A médica infectologista
Andreia Ferreira Nery, professora da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN) e coordenadora de um projeto sobre o tema, explica que o aumento
dos casos está ligado à ausência de uma abordagem integrada. “Existe uma dificuldade
histórica do tratamento da esporotricose felina e estima-se que, provavelmente,
para cada um caso humano tem entre quatro a cinco casos felinos, que é mais ou
menos a estimativa que a gente tem no Estado”, afirma. Segundo ela, o problema
se agrava nas regiões com falhas de saneamento, coleta de lixo precária e
abandono de animais.
Os dados da Secretaria
Estadual de Saúde Pública (Sesap) mostram que 85,1% dos casos humanos ocorreram
na 7ª Região de Saúde, que inclui Natal, Parnamirim e Extremoz. Em 2023 e 2024,
o Estado viveu o pico da doença: 57% de todas as notificações ocorreram nesses
dois anos. Em 2025, até 1º de abril, foram registrados 58 casos humanos
suspeitos em nove municípios — entre eles, pela primeira vez, Mossoró e Currais
Novos. Entre os animais, somente Natal concentrou 78,4% das ocorrências,
seguido por Extremoz e Parnamirim.
A esporotricose se transmite
principalmente por meio de arranhões, mordidas ou contato com secreções de
gatos infectados, que também são as maiores vítimas da doença. “O grande
protagonista da esporotricose não é o ser humano, é o gato. Enquanto a gente tiver
uma relação de algo em torno de um humano para cada quatro ou cinco gatos
doentes, a gente vai continuar tendo muita esporotricose felina. Sem o
tratamento dos animais, o ciclo de transmissão não será interrompido”, afirma
Andreia.
Além do impacto
epidemiológico, a esporotricose tem um recorte social e de gênero evidente:
quase 70% dos casos humanos atingem mulheres. “A maioria dos casos acomete
mulheres porque, historicamente, são mulheres que cuidam. Mulheres cuidam de
pessoas, mulheres cuidam de bicho, mulheres cuidam da casa. Essas mulheres,
quando adoecem, a vida de toda a família adoece também”, relata a médica. Ela
explica que, além das feridas físicas, há sequelas emocionais e sociais, como
dor crônica, cicatrizes visíveis e afastamento das atividades familiares e
laborais.
O projeto liderado pela UFRN
para enfrentamento da esporotricose foi aprovado por edital nacional do CNPq e
reúne diversas instituições. Com duração de dois anos e investimento de R$ 494
mil, a iniciativa vai atuar em todos os territórios de saúde do Estado,
promovendo capacitação de pelo menos 800 profissionais das áreas humana, animal
e ambiental. “Esse projeto traz duas questões bastante inovadoras, que é o
recorte de gênero e a relevância da saúde ambiental no enfrentamento à
esporotricose”, afirma Andreia.
Entre as ações previstas estão
a formação de profissionais da atenção primária, apoio clínico, elaboração de
materiais educativos e visitas a territórios com maior número de casos. A
abordagem segue o conceito de Saúde Única, que reconhece a interdependência
entre humanos, animais e o meio ambiente. “A esporotricose é uma doença ligada
a situações de urbanização sem um projeto adequado de urbanismo. E ela
acontece, principalmente, nos lugares onde tem dificuldade com cumprimento de
políticas públicas, como limpeza urbana, coleta de lixo, controle de
desastres”, afirma a infectologista.
SUS oferece tratamento
O tratamento da esporotricose
está disponível no SUS. A droga mais utilizada é o itraconazol, oferecido nas
Unidades Básicas de Saúde. Casos graves, que exigem hospitalização e uso de
anfotericina B, são encaminhados ao Hospital Giselda Trigueira, referência em
doenças infecciosas no RN. “Existe um protocolo clínico de atendimento, sim, da
esporotricose, mas é uma doença que pode ser atendida na unidade básica de
saúde. A gente está começando já um programa de treinamento e isso tudo vai ser
articulado via a Secretaria Estadual com as secretarias municipais de saúde”,
explica Andreia.
Nos gatos, o tratamento também
é feito com itraconazol, mas exige mais tempo e cuidado. Animais com suspeita
de esporotricose devem ser isolados do convívio com humanos e outros bichos. Em
caso de morte, os corpos não devem ser enterrados, mas incinerados — prática
que ainda é rara no Estado e favorece a manutenção do ciclo da doença. “As
pessoas, por não ter onde descartar o corpo do animal que morreu, muitas vezes
enterram, e isso mantém a transmissão”, alerta.
Desde 2022, o sistema
NotificaRN, da Sesap, permite o registro da doença por tutores, veterinários e
clínicas privadas. Até abril deste ano, 122 notificações foram feitas no
sistema, a maioria em Natal. A ferramenta complementa os dados do Sistema de
Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e amplia a vigilância. “A saúde
animal é muito pouco discutida no âmbito das políticas públicas, e é importante
saber que, na verdade, a gente vai continuar sem enxergar a doença. Então ela
fica como se fosse uma doença que a gente só tem ali, a parte de cima do
iceberg sendo vista, mas, na verdade, ela é gigante embaixo disso”, compara
Andreia.
A esporotricose está agora
incluída na lista nacional de doenças de notificação compulsória, mas o Rio
Grande do Norte já adotava essa prática desde 2017, inclusive para os casos
felinos — o que ainda não é exigido em nível federal. “Nesse momento, nós fomos
pioneiros em tratar a esporotricose como um problema de saúde pública, não
apenas na saúde humana, mas na saúde ambiental”, reforça a médica. Ela lembra
que o grupo de trabalho estadual sobre a doença atua desde 2016, com ações já
realizadas em diversos municípios.
A médica, Andreia Ferreira Nery,
coordena projeto na UFRN | Foto: Adriano Abreu
Projeto busca conter doença no
RN
Com foco na interdependência
entre saúde humana, animal e ambiental, a UFRN deu início a um projeto inovador
para enfrentar o avanço da esporotricose no estado. A iniciativa integra ações
educativas, clínicas e de vigilância em territórios prioritários e é coordenada
pela médica infectologista Andreia Ferreira Nery, professora do Departamento de
Infectologia da instituição.
A proposta foi uma das
selecionadas na chamada nacional nº 34/2024 do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e prevê a atuação direta nas
oito regiões de saúde do estado. O plano é capacitar pelo menos 800
profissionais, incluindo médicos, enfermeiros, veterinários, agentes
comunitários, cuidadores de animais e lideranças comunitárias. A capacitação
será feita com aulas presenciais, videoaulas, cartilhas, podcasts e visitas in
loco aos territórios com maior número de notificações.
A UFRN lidera um consórcio
institucional com diversos parceiros públicos e privados, entre eles a
Secretaria de Estado da Saúde Pública (Sesap), a Secretaria Municipal de Saúde
de Natal, o Instituto Santos Dumont (ISD), a Universidade Federal de Mato Grosso
(UFMT), ONGs como a Patamada e clínicas veterinárias. A Superintendência de
Comunicação da UFRN (Comunica) também atua na difusão de conteúdos educativos
em linguagem acessível e canais digitais.
“Esse projeto também precisa
ser contemplado. Também é um projeto da universidade que trabalha com setores
públicos, que trabalha com setores de organizações não governamentais e
privadas e que se propõe a discutir as políticas públicas para melhoramento do
enfrentamento para todos e todas”, afirma Andreia. O grupo coordenado por ela
participa do recém-criado GEASU-RN (Grupo de Estudo e Ações em Saúde Única do
RN), que reúne docentes, pesquisadores, profissionais do SUS e especialistas em
ecologia e comunicação.
Além da capacitação técnica, o
projeto aposta no matriciamento como metodologia de formação contínua e apoio
clínico às equipes locais. A ideia é atuar em rede com as Unidades Básicas de
Saúde, oferecendo consultoria especializada para o manejo de casos leves e
moderação de fluxos de encaminhamento de casos graves. “A nossa ideia é fazer
visitas in loco e também receber pessoas para serem treinadas a partir do nosso
ambulatório de referência”, diz a infectologista.
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