Cada vez mais mulheres estão
assumindo o controle da própria casa, adquirindo autonomia e confiança para
lidar com reparos domésticos que antes eram frequentemente associados aos
homens. Entretanto, a participação de mulheres no mercado da construção civil
ainda é vista com preconceito, conforme especialistas.
O curso de reparo doméstico da ONG ReforAmar oferece autonomia, habilidades
práticas e confiança para lidar com pequenos consertos do dia a dia, do
encanamento à elétrica, da pintura à montagem de móveis.
Karollayne Custódio foi aluna do curso. Formada em designer de interiores e
técnica em edificações, ela domina toda a teoria, mas na prática enfrentava
dificuldades simples do dia a dia — como instalar um parafuso, escolher a bucha
correta ou até usar a parafusadeira em casa. “Eu queria linkar meus
conhecimentos teóricos com a prática. Queria ter mais autonomia no dia a dia,
em casa, na vida“, disse
De acordo com ela, a ausência de incentivo e de conhecimento gera insegurança,
fazendo com que mulheres dependam de outras pessoas para a realização de
tarefas simples: “não somos incentivadas desde cedo como os homens a ter
conhecimento de ferramentas, por exemplo, não sabemos da importância de ter
algumas ferramentas simples para o dia a dia”.
Hoje, Karollayne consegue aplicar os conhecimentos adquiridos no curso em sua
prática profissional. Ela atua com instalações elétricas, hidráulicas e de gás,
além de serviços relacionados a telefonia e ar-condicionado.
O curso oferece uma turma específica voltada para mulheres trans. Ingrid
Ominikan, que participa do curso, relata que também enfrenta preconceito, mas
se dedica a aprender cada vez mais para conseguir um emprego na área.
Embora já tivesse acompanhado a construção das duas casas onde morou, Ingrid
não tinha nenhum conhecimento prévio sobre construção civil. Ela não sabia
realizar reparos domésticos, nem mesmo os mais simples, como fazer a pintura de
uma parede.
Há cinco anos, Ingrid namora um ajudante de pedreiro e, agora, graças ao curso,
também consegue auxiliá-lo nos serviços. Hoje, ela já se sente capaz até de
participar de etapas da construção de uma casa, como preparar a massa de
cimento e levantar paredes.
“Pretendo, após o curso, intensificar meu conhecimento na área da construção.
Mesmo que eu não coloque a mão na massa, quero estar preparada para
administrar, já que meu namorado é servente de pedreiro — e eu vou ajudá-lo, e
muito”, afirma.
Paula Santos é professora de elétrica básica e, durante as aulas, ensina
conceitos como tensão, potência e amperagem. Entre outros objetivos, ela
capacita as alunas a identificar pequenos defeitos e problemas na rede
elétrica, permitindo que realizem os reparos por conta própria ou saibam
avaliar a situação ao acionar um profissional.
Muitas mulheres, por não conhecerem como o serviço é feito, são enganadas na
hora que chega o orçamento.
A maior parte das mulheres procura o curso porque cansaram de esperar por seus
maridos para fazer reparos em casa.
“A aluna quer trocar a resistência do chuveiro, já pediu para o marido
consertar já faz três meses e ele não faz. Então, elas mesmas querem fazer”,
exemplifica Santos acerca da justificativa pela qual as mulheres têm procurado
o curso.
Algumas manifestam interesse em seguir carreira na área da construção civil
após o curso, mas ainda persiste o preconceito nesse setor.
“A moça que é montadora de móveis já é recebida com certa dúvida. Já, por outro
lado, se é a mesma montadora que está indo à casa de uma moça, por exemplo,
fazer essa montagem, ela se sente mais segura em receber aquela profissional.
Ainda é um espaço carente de ocupação por parte desses profissionais”, criticou
Paula Santos.
Helô Lira aprendeu a fazer reparos domésticos observando outras pessoas
realizarem os serviços. “Meu pedreiro brincou quando chamei um técnico de ar
condicionado aqui em casa: ‘Não deixa ela ficar olhando muito não, senão você
vai perder o emprego.’ Eu perguntei por quê, e ele respondeu: ‘Ah, porque ela
já vai aprender.’”, contou, sorrindo.
Hoje ela é formada em eletrotécnica e também já atuou como mestre de obras na
ReforAmar.
Helô Lira reconhece que ainda existe preconceito sofrido por mulheres que
trabalham na construção civil, mas isso não atrapalha a paixão sentida por ela
em atuar nessa área. “Eu nunca dei importância. Não tenho tempo para me
preocupar com isso”, revelou.
Ela também atua como professora no curso de reparos, ministrando a matéria de
Introdução a Ferramentas. A maioria das mulheres chega sem saber identificar
nenhuma ferramenta.
Mulheres estão redefinindo o
trabalho
A antropóloga especialista em
gênero, Andressa Morais, explica que, especialmente no Rio Grande do Norte, as
mulheres seguem enfrentando uma série de desafios estruturais e culturais.
Segundo ela, algumas mudanças começam a se materializar em gestos discretos,
mas simbólicos — como a existência de uma “esposa de aluguel”, figura que surge
como equivalente ao tradicional “marido de aluguel”, o conhecido profissional
“faz tudo”.
“Objetivamente, sabemos que as mulheres, conforme indicadores estatísticos,
acumulam mais de uma jornada de trabalho, seja na vida privada/doméstica, seja
na vida pública/trabalhista”, descreve a especialista.
A antropóloga Andressa Morais aponta que, no imaginário social, o corpo
feminino é direcionado a tarefas emocionalmente reguladas — aquelas ligadas ao
cuidado, à delicadeza e à manutenção afetiva do lar.
“Quase ninguém concebe uma mulher batendo um martelo, carregando uma saca de
cimento, sustentando a estabilidade de uma construção”, observa.
Para ela, a contradição é evidente. Embora a sociedade ensine as mulheres a
serem o pilar das relações sociais — cuidando do marido, dos filhos e de toda a
lógica do ambiente doméstico —, quando o assunto envolve força física ou
competências técnicas, elas são imediatamente associadas à fragilidade.
Morais destaca que a rigidez que, por décadas, separou de forma categórica o
que era “trabalho de homem” e “trabalho de mulher” já não encontra mais
sustentação no contexto contemporâneo.
“Eu, mulher, acessar um curso de conhecimentos gerais do modo de funcionamento
das áreas da construção civil. Num passado não tão distante, essa possibilidade
não era sequer cogitada.”, afirma.
Segundo Morais, o impedimento não estava na falta de interesse feminino. “Isso
não quer dizer que as mulheres não se interessavam antes, apenas que o grau de
preconceito, de rigidez sobre os papéis de gênero, se manifestava de forma mais
intensa e agora tendem a se flexibilizar, não por boa vontade, mas por
pressão”, explica.
Representatividade nas
engenharias
A presidente do Conselho
Regional de Engenharia e Agronomia (Crea-RN), Ana Adalgisa, explica que a
participação feminina na engenharia ainda é baixa, mas vem crescendo
gradualmente.
Para ela, o principal desafio é convencer as meninas, ainda na escola, de que
vale a pena sonhar com a engenharia.
Uma pesquisa do Conselho Federal indica que enquanto muitos homens escolhem a
profissão por vocação declarada, grande parte das mulheres chega ao curso por
afinidade com matemática e áreas de exatas. “Precisamos despertar o sonho,
porque a habilidade numérica elas já têm. Falta mostrar que é possível ocupar
esses espaços”, defende Ana Adalgisa.
Ela destaca que a representatividade tem papel decisivo nesse processo: “quando
as meninas veem uma presidente mulher ou profissionais em posições de
liderança, elas se inspiram a chegar lá.”
A engenheira civil e CEO do ReforAmar, Fernanda Silmara, destaca que a
capacitação também abre portas no mercado de trabalho. “A ideia é formar uma
rede de mulheres capacitadas, confiantes e preparadas para atuar tanto dentro
de casa quanto no mercado de trabalho”, disse.
Os próximos passos do curso de Reparos da ONG incluem expandir o modelo para
outros bairros, criar módulos avançados e incorporar novos conteúdos.
A ideia é estruturar uma rede de mulheres capacitadas, confiantes e preparadas
tanto para atuar em casa quanto para ingressar na construção civil.
A ação se soma aos demais projetos sociais desenvolvidos pela ONG, que têm como
principal eixo a promoção de dignidade e transformação social. “Quando
reformamos uma casa, devolvemos segurança. Quando capacitamos alguém,
devolvemos poder e oportunidade”, destaca a gestora.
Ananda Miranda/Repórter
Tribuna do Norte

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