Serviços como costureiras,
alfaiates e consertos de panelas continuam sendo personagens frequentes na
rotina dos bairros do centro de Natal, carregados de histórias e tradições.
Mantidas principalmente pelos mais velhos, essas ocupações seguem firmes mesmo
diante da modernização e da mudança nos hábitos de consumo.
Criado no bairro das Rocas,
Orlando começou na profissão aos 27 anos. Fez estágio no Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial de Pernambuco (SENAI-PE), em Recife, e estudou no
Instituto Universal Brasileiro, onde conquistou o 4º lugar em uma competição
regional do Norte-Nordeste. Chegou a receber uma proposta de estágio na capital
pernambucana, mas pouco tempo depois decidiu empreender por conta própria.
Após anos instalado próximo ao
tradicional Beco da Lama, Orlando lembra que, antigamente, o fluxo de clientes
era intenso e a renda no fim do mês compensava o esforço. Hoje, com o movimento
em queda, o retorno financeiro já não é o mesmo. Ainda assim, ele segue firme,
movido pelas amizades construídas ao longo do tempo. “Na sala de espera da
oficina fica um monte de aposentado que vai para bater papo”, conta sobre o dia
a dia na oficina.
A oficina de Orlando é um
verdadeiro museu, com quadros, jornais e revistas que contam a história do Rio
Grande do Norte. Por exemplo, as poltronas da modesta sala de espera foram
recuperadas do antigo Cinema Rio Grande. A bancada de trabalho do relojoeiro
também carrega histórias. Desde 1969, são muitos relógios consertados ao longo
dos anos. Ele conta que não abre mão da antiga companheira: “Já quiseram me dar
outra, mas eu não quis”, diz.
O relojoeiro hoje trabalha na
oficina sozinho, mas nem sempre foi assim; chegou a trabalhar com uma equipe de
até dez pessoas. “Eu mantenho mesmo sozinho por causa da tradição. Hoje eu
continuo nessa profissão porque amo o que faço”, relata. O relojoeiro já é
aposentado, mas não pretende parar de trabalhar na oficina.
De acordo com o sociólogo
Cesar Sanson, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), o trabalho tem um significado que vai além da obrigação. “O trabalho é
central na vida das pessoas. Não é apenas uma atividade material, de transformação
ou de execução de tarefas. As pessoas precisam do trabalho, mas muitas vezes
também se realizam por meio dele, gostam do que fazem e se sentem gratificadas
pela atividade que exercem”, defende o especialista.
Na Ribeira, o sapateiro
Ricardo Cavalcante já é conhecido pelos clientes, em mais de 20 anos da
profissão que aprendeu com o pai. Trabalha no mesmo ponto onde o pai atuava e
recebe muitos clientes diariamente, muitos deles já antigos.
A tradição na sapataria também
está sendo transmitida ao filho do sapateiro, que está aprendendo a arte da
costura para seguir os passos do pai. “Ensino para o meu filho para ele ficar
na arte também, porque o meu pai se foi e eu fiquei”, conta, reforçando o
desejo de manter viva a tradição familiar.
Apesar da continuidade, ele
reconhece as mudanças no mercado: “Mudou muito, tem muitos serviços de sapato
que eu não faço. Porque os modelos mudaram muito. Às vezes não dá para eu
fazer”, disse o sapateiro enquanto costurava com a máquina que herdou do pai.
A antropóloga Andressa Morais,
pesquisadora do Instituto Humanitas de Estudos Integrados (IH/UFRN), explica
esse fenômeno: “A relação de trabalho também marca um aspecto social e
comunitário, de uma relação familiar. Ou seja, em muitas comunidades, esses
profissionais vão ter um certo respeito compartilhado socialmente, elaborado em
torno de uma certa relação de confiança”, explica.
Memória
Para a antropóloga, a presença
de profissionais de ofício representa mais do que uma simples prestação de
serviço; trata-se de um saber prático que contribui para a cultura potiguar.
“Pelo menos aqui na nossa região, ainda há muitos traços dessa herança que não
estão em desaparecimento, que são visíveis para nós”, afirma.
A antropóloga destaca que
essas profissões, mesmo diante da lógica atual de consumo rápido e descarte
acelerado, nos lembram de uma relação diferente com o tempo e os objetos. “Elas
se manifestam nessa memória social na medida em que nós vamos até elas, necessitamos
delas, mas também respeitamos”, observa. Segundo a antropóloga, esses ofícios
funcionam como marcadores de uma memória coletiva e de um vínculo afetivo com a
“ordem do fazer”, revelando camadas profundas de pertencimento.
“Prefiro os clássicos”
Embora os smartwatches tenham
dominado os pulsos, Orlando de Oliveira ainda conserta modelos modernos, fez
curso de eletrônica, mas confessa preferir os clássicos: “Os antigos são
melhores. Aqui na cidade, o único relojoeiro que mexe com relógio mecânico sou
eu. Também mexo nos eletrônicos, mas a maioria dos relógios de hoje é
descartável”, explica sobre a durabilidade dos novos relógios.
Orlando Paulo de Oliveira conserta
relógios há mais de 50 anos. Sua especialidade é trabalhar com relógios
mecânicos | Foto: Alex Régis
Para a antropóloga, saberes
como esses devem continuar pelas próximas gerações: “Um ofício que foi do pai,
que moldou as condições de vida da família, que produziu reconhecimento na
comunidade, passa para os filhos, e talvez até para os netos.” Ela argumenta
que esse processo revela uma estrutura social profunda, na qual a profissão se
transforma em identidade.
Ainda que ofícios como o de
costureira, sapateiro ou relojoeiro pareçam desaparecer diante da lógica do
consumo acelerado, Morais observa que eles continuam ocupando um espaço
simbólico e cultural relevante. “Eles permanecem ali, mesmo que timidamente, representando
a persistência de uma memória social encarnada no corpo dessas pessoas”,
conclui.
Trabalho em transição
Um estudo do Fórum Econômico
Mundial aponta que cerca de 22% dos empregos existentes devem desaparecer entre
2025 e 2030. A projeção foi feita com base na análise de macrotendências que
impactam diretamente o mercado de trabalho global. Apesar do dado alarmante, o
relatório também estima a criação de cerca de 140 milhões de novas profissões
no mundo ao longo do mesmo período.
O levantamento reuniu
informações de mais de mil empresas globais, responsáveis por 14 milhões de
postos de trabalho, distribuídos em 22 setores industriais e 55 economias ao
redor do planeta. O objetivo foi entender como as transformações tecnológicas, sociais
e ambientais devem moldar o futuro do trabalho e quais estratégias os
empregadores pretendem adotar para acompanhar essas mudanças.
Cesar Sanson explica que a
sociedade está passando por uma nova definição do que é trabalho. “Muitos
trabalhos manuais serão substituídos por máquinas. Muitos trabalhos manuais já
mudaram o seu perfil”, disse o sociólogo.
De acordo com ele, o
desaparecimento de algumas profissões está diretamente ligado à evolução das
forças produtivas, especialmente às transformações provocadas pela revolução
tecnológica e informacional. “A datatificação, que é o uso da inteligência artificial,
tem acelerado esse processo”, afirma.
Segundo ele, funções ligadas
ao mercado e ao trabalho de escritório devem reduzir drasticamente com o avanço
da tecnologia, sem, no entanto, provocar impactos culturais profundos, por não
estarem ligadas a práticas tradicionais ou relações afetivas com o trabalho.
Para ele, brevemente a inteligência artificial vai substituir parte das ocupações de trabalho. “Sempre haverá possibilidades alternativas, mas muitas atividades que eram anteriormente feitas manualmente, que passaram agora para serem realizadas através do uso da informática, muitas delas serão substituídas pela inteligência artificial.”
Tribuna do Norte

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