Ao longo do percurso que o
ministro costuma fazer na capital federal diariamente em carro de vidros
blindados e fechados, porém, a realidade é diferente. As margens da N2, uma via
a menos de um quilômetro do Palácio do Planalto, onde Costa
despacha, são ocupadas por barracas feitas com sacos de lixo e placas pedindo
por alimentos e cobertores. Perto dali, na Rodoviária do Plano Piloto, a dois
quilômetros do gabinete dele, dezenas de pessoas dormem embaixo dos viadutos.
Final de tarde na avenida L3
Norte. A seis quilômetros do Planalto, Maria das Dores, de 54 anos, prepara o
seu jantar com um pequeno amontoado de carvão que guarda em sua barraca
improvisada, na calçada, onde vive com a filha. Vagando de um lugar para o
outro, ela costuma recriar o seu lar até que os agentes a serviço do Governo do
Distrito Federal a obriguem a procurar outro rumo. A ocupação onde Maria das
Dores vive é dividida com outras pessoas em situação de rua e fica em um
trajeto usual entre os Três Poderes e a Granja do Torto, uma das
residências oficiais da Presidência.
A sua chegada à ocupação foi
recente. Ela conta que na quinta-feira, 1º, um dia antes da polêmica fala do
ministro da Casa Civil, servidores do GDF a despejaram de outra calçada onde
vivia, levando suas roupas, cobertores e lonas. Mostrando o seu barraco improvisado
de cobertores, papelão e lona, ela não esconde seu desalento ao falar da espera
por um apartamento subsidiado pelo governo, além de uma cirurgia no olho que
pode evitar a cegueira.
“Quem prometeu (a residência) foi o Lula, nós
‘votemos’ para ele esperando uma casinha e até hoje. Já para os outros, já
saiu, mas para a gente ainda não”, disse. “Me cobraram R$ 10 mil (pela cirurgia), como é que eu vou
tirar R$ 10 mil para pagar uma operação no meu olho? Então, vou ter que pedir
ajuda para um ou para outro até conseguir”, disse Maria das Dores.
A poucos metros do barraco de
Maria das Dores, vive Erisvaldo Santana, nascido há 30 anos na cidade baiana de
Irecê. Ele diz que passou a residir nas ruas após ter sido roubado,
sobrevivendo com sua mulher da coleta de materiais recicláveis e ajuda dos
motoristas que trafegam pela avenida.
Enquanto Erisvaldo conversava
com o Estadão, um carro branco
estacionou no meio-fio da pista e entregou uma caixa de garrafas PET para o casal.
A ajuda veio de Tamy Lacerda, de 58 anos, uma profissional de saúde aposentada
que regularmente faz trabalhos solidários nas ocupações da L3 Norte. Para ela,
a fala do ministro da Casa Civil sobre Brasília mostra uma “ignorância de quem
não conhece o seu povo”.
As
pessoas que são ignorantes, no sentido de ignorar a realidade e não querer
conhecê-la, a gente que conhece um pouco poderia, sim, apresentá-los à
realidade da sociedade do DF
Tamy afirma que Costa deveria
acompanhá-la em seu trabalho voluntário nas ocupações da capital federal. “As
pessoas que são ignorantes, no sentido de ignorar a realidade e não querer
conhecê-la, a gente que conhece um pouco poderia, sim, apresentá-los à
realidade da sociedade do DF.”
Desigualdade
Os problemas e as desigualdades
sociais de Brasília continuam fora do centro administrativo da capital. Dos 3
milhões de moradores do DF, apenas 225 mil vivem no Plano Piloto, região
administrativa onde ficam as sedes dos Poderes, segundo o Instituto de
Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF). A grande maioria da
população reside nas chamadas periferias urbanas, que apresentam
características que muito se distanciam da qualidade de vida das residências em
volta do centro do poder.
Uma das regiões que mais
demonstram a desigualdade na capital federal é a do Setor Santa Luzia, no
bairro da Cidade Estrutural, que fica a menos de 15 quilômetros do gabinete de
Costa e sofre com problemas de saneamento básico, iluminação e assistência social.
A comunidade surgiu após a
criação do Lixão da Estrutural,
desativado em 2018 e que já foi o maior depósito de dejetos a céu aberto
da América Latina. Fonte de renda
para a população, o fim do lixão deixou a população local, vulnerável, em
situação de sobrevivência ainda mais crítica. Uma pesquisa do GDF de 2021
mostrou que a renda média de um morador do Setor Santa Luzia é de R$ 1.261 – o
salário do ministro da Casa Civil, após reajuste em abril deste ano, é 32 vezes
maior: R$ 40.651.
O contexto da comunidade ficou
ainda mais grave durante a pandemia de covid-19. Nesse período, a moradora
Maria da Guerra, de 43 anos, decidiu criar um centro de apoio para as mães da
região que necessitavam de alimentos básicos para os seus filhos. “Elas
começaram a bater aqui na porta pedindo arroz e açúcar”, relembrou.
No ponto mais alto da
comunidade, é possível avistar os grandes prédios do centro de Brasília. Maria
da Guerra, porém, diz que os olhares dos políticos não chegam até as ruas da
região, castigadas pela terra vermelha e pela falta de coleta de lixo. “Eles
não sabem onde é a Santa Luzia. Só vivem nos palacetes, então eles acham que é
só o luxo”, observou a moradora.
Segundo a ativista, o novo
governo federal e o governo distrital ainda não chegaram à região, apesar de
seus mandatários estarem próximos das suas casas. Ela observa que cumpre um
dever que deveria ser realizado pelo poder público. “A gente vive a realidade da
vida, principalmente a do sofrimento, da fome, do descaso”, afirmou. “A gente
não tem saneamento básico, vive em condições precárias e com mães vivendo em
barracos de madeirite.”
Pioneiro
Outro trecho do discurso de
Rui Costa que irritou brasilienses foi quando o ministro questionou a mudança
da capital federal para o Cerrado nos anos 1960. “Aquele negócio de botar a
capital do Brasil longe da vida das pessoas, na minha opinião, fez muito mal ao
Brasil”, afirmou o ministro na Bahia – Estado que já governou por duas vezes.
Quando o mineiro Enildo
Veríssimo, de 78 anos, chegou a Brasília, no tempo da construção da cidade, a
capital federal era bem diferente das paisagens arquitetônicas de hoje em dia.
Com apenas 15 anos, ele foi um dos “candangos”, trabalhadores que construíram
os prédios públicos. Logo depois, fundou a Pizzaria
Dom Bosco, a primeira na nova sede do poder.
Dono de uma das casas mais
tradicionais da capital, ele viu Brasília se transformar de um “canteiro de
obras empoeirado com barracas de madeira” para uma metrópole. À reportagem, o
pioneiro disse que se entristeceu após ver o pronunciamento de Costa e que o
ministro falou “de forma equivocada” por desconhecer “o esforço e o sofrimento”
empenhados para erguer a cidade. “A gente ralando e o cara diz que aqui é uma
‘ilha da fantasia’? Se fosse uma ilha da fantasia, eu não estaria trabalhando
até hoje”, afirmou.
Deputado distrital mais votado
nas eleições de outubro, Chico Vigilante (PT-DF)
chegou ao Distrito Federal na década de 1970. O petista classifica a fala do
ministro como “infeliz” por reproduzir o “senso comum” das pessoas que moram
fora de Brasília. Vigilante defendeu um pedido de desculpas formais. Ele também
cobra uma visita de Costa às periferias da cidade e às produções agrícolas das
zonas rurais. “Eu vou mostrar a Brasília que não é a Esplanada dos
Ministérios.”
Na tarde de quarta-feira,
7, Rui Costa usou sua conta no Twitter para dizer que não foi “feliz” nas
palavras em relação a Brasília e que tinha apenas feito um desabafo sobre o
“processo de decisões”. “Quero deixar absolutamente claro que meu desabafo nada
tem a ver com brasileiras e brasileiros que vivem na capital, com seus
familiares, lutando, sonhando e passando dificuldades como tanta gente em todas
as cidades do País”, disse, sem um pedido claro de desculpas.
O Estadão
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