O episódio acima celebra e
rememora a Semana de Arte Moderna, realizada entre os dias 13 e 17 de fevereiro
de 1922. A leitura do poema é parte integrante do processo de gravação para o
programa Caminhos da Reportagem, da TV Brasil. A
poeta é a slammer (que participa de
batalhas de poesia) e atriz Luz Ribeiro, que traz sua interpretação da
obra de Mário de Andrade, considerada por muitos como um dos marcos inaugurais
do modernismo brasileiro.
Além de Mário, nomes hoje
conhecidos do grande público, como o escritor Oswald de Andrade, o compositor
Heitor Villa-Lobos, o escultor Victor Brecheret e os artistas plásticos Anita
Malfatti, Di Cavalcanti e Vicente do Rego Monteiro, participaram da Semana.
Marcada por controvérsias, a
Semana de 22 é ainda hoje objeto de estudo para artistas e pesquisadores que,
de diversas formas, refletem sobre os processos artísticos propostos pelos
primeiros modernistas, também chamados de modernistas canônicos. De um lado,
estão pesquisadores que refletem a Semana como um grande momento de ruptura
para as artes no país; de outro, estudiosos que defendem que a Semana foi
somente um evento entre os diversos espaços de discussão e criação sobre o
modernismo espalhados pelos estados brasileiros.
Apesar de a Semana de 22 ser considerada um marco - senão
transformador, mas simbólico - para as artes plásticas, música, literatura,
teatro e arquitetura brasileiras, as propostas começaram a ser gestadas anos
antes, por artistas e escritores de diversas partes do país. Daí a necessidade
de compreender não somente a Semana e seu legado, mas também os passos
anteriores à sua realização.
O
ANTES – A cidade, os parnasianos e os pré-modernistas
Em 1972, para celebrar os 50
anos da Semana de Arte Moderna, Carlos Drummond de Andrade publicou o
texto A Semana continua, no Jornal do
Brasil. Para ele, a Semana foi “um grito no salão bem-comportado, e para dar
grito não se pede licença ao distinto auditório: grita-se”.
O excerto, detalhado no prefácio da obra Semana de 22 – antes do começo, depois do fim, de José e Lucas De Nicola, não versa somente sobre a Semana de 22, mas sobre o espaço onde ela foi realizada: o Theatro Municipal de São Paulo, fundado em 1911.
O Theatro, bem como outras
edificações construídas no período, representa o modelo de cidade que São Paulo
aspirava ser. No site da instituição, o texto de apresentação traz indícios
desse desejo: “a luxuosa construção, visivelmente influenciada por teatros de
ópera da Europa, foi erguida como símbolo aspiracional da alta sociedade
paulistana, que com a fartura do ciclo do café desejava uma casa de espetáculos
à altura de suas posses e pretensões europeias para receber os grandes artistas
da música lírica e do teatro”.
Em franca expansão, a cidade,
que até o final do século 19 tinha ares de vilarejo, começava a apresentar os
indícios da megalópole que se tornaria. “Em 1872, que é o ano que foi feito o
primeiro censo populacional no Brasil, ainda nos tempos do Império, São Paulo
contava com pouco mais de 31 mil habitantes. Ao longo da década de 1920, a
população vai chegar a mais de 580 mil habitantes. Houve um crescimento
exponencial num período muito curto de tempo, acompanhado de uma grande
inversão de capitais, que criou a infraestrutura que trouxe riqueza”, diz o
pesquisador Lucas De Nicola.
Dessa forma, a Semana de 22 é realizada num espaço recém-construído pela aristocracia paulistana que, com olhos voltados para a Europa, busca fazer de São Paulo uma capital da cultura erudita.
No que se refere à arte, o
olhar também era voltado para as terras europeias. O parnasianismo, movimento
vigente, originalmente francês, que se intensificou em meados do século 19,
propunha a retomada de uma cultura clássica. O preciosismo da escrita, a
valorização da estética e a métrica rigorosa eram as tônicas da escola
literária parnasiana. Um dos maiores expoentes do parnasianismo brasileiro é o
escritor Olavo Bilac. Um de seus mais conhecidos poemas, A um poeta, representa com clareza
os ideais do parnasianismo, tanto na métrica quanto no conteúdo:
Longe
do estéril turbilhão da rua,
Beneditino escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha e teima, e lima, e sofre e sua!
Mas
que na força se disfarce o emprego
Do esforço: e trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua
Rica mas sóbria, como um templo grego
Não
se mostre na fábrica o suplício
Do mestre. E natural, o efeito agrade
Sem lembrar os andaimes do edifício:
Porque
a Beleza, gêmea da Verdade,
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.
(A
um poeta, poema publicado em 1888, no livro Poesias, de Olavo Bilac)
É em meio a esse contexto
sociocultural que começa a se formar um grupo de jovens artistas, muitos deles
filhos da aristocracia paulistana, interessados em política e cultura
brasileiras.
Num pequeno apartamento no
centro da capital paulista, o escritor e jornalista Oswald de Andrade promovia
encontros com outros escritores e artistas. A garçonnière da
Rua Libero Badaró, onde o autor viveu entre os anos de 1917 e 1918, era
frequentada pelos principais intelectuais paulistas do pré-modernismo, como
Guilherme de Almeida, Monteiro Lobato, Menotti Del Picchia, Léo Vaz, Edmundo
Amaral, entre outros. Nestes encontros, os frequentadores do apartamento
escreviam um diário, que foi alimentado entre maio e setembro de 1918. Amigo de
infância de Oswald, Pedro Rodrigues de Almeida batizou o diário de O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo.
O escritor José Roberto Walker, autor do livro Neve na Manhã de São Paulo, diz que o pequeno apartamento era um espaço onde Oswald reuniu o que havia de mais moderno naquela época em São Paulo e que o diário “virou um documento da vida cultural e da vida social daquele período e aquilo se tornou uma espécie de primeiro documento do modernismo em São Paulo”.
Apesar de os encontros
promovidos por Oswald tratarem de temas que viriam a ser importantes para a
criação da Semana de 22, foi nas artes plásticas que o movimento começou a
tomar forma. Os precursores foram Lasar Segall e Anita Malfatti.
Segall, lituano radicado na
Alemanha, chega ao Brasil pela primeira vez em 1913, para expor em São Paulo e
em Campinas (SP). Inicialmente de natureza impressionista, Segall passa a se
interessar pelo expressionismo a partir do ano seguinte, 1914. Somente em 1923
o pintor se muda para o Brasil e fixa residência na capital paulista.
Malfatti, brasileira, foi para
a Europa, em 1910, para estudar na Academia Real de Belas Artes de Berlim,
capital alemã. O primeiro contato com o expressionismo fez com que ela, ao
retornar ao Brasil, em 1914, apresentasse a Exposição de Estudos de Pintura
Anita Malfatti, realizada em São Paulo.
Foi com a “Exposição de
Pintura Moderna - Anita Malfatti”, também realizada na capital paulista, entre
os dias 12 de dezembro de 1917 e 11 de janeiro de 1918, que a artista entrou no
radar modernista. A mostra é considera por diversos pesquisadores um marco na
história da arte moderna brasileira.
Em entrevista à TV Brasil, o
escritor Jason Tércio, autor do livro Mário de Andrade – em busca
da alma brasileira, diz que a exposição de Anita marcou a entrada
do Brasil na modernidade cultural e artística.
“Foi uma exposição que causou
bastante impacto não só no público, como também ajudou a reunir esse grupo que
mais tarde iria promover a Semana de Arte Moderna. Foi a partir desses
contatos, nessa exposição, inclusive com a própria Anita, que não era conhecida
de nenhum deles, que Di Cavalcanti, Guilherme de Almeida... todos eles acabaram
se encontrando nessa exposição e, a partir daí, começaram a manter contatos. O
Mário de Andrade, inclusive, considera que o modernismo começou com essa
exposição em 1917”.
Atualmente exposta na
Pinacoteca de São Paulo, a tela Tropical –
inicialmente chamada de Negra Baiana –
era uma das obras presentes na exposição de 1917. Doada para o museu pela
própria artista em 1929, a obra é uma das mais representativas do período
modernista. Cercada de elementos tipicamente brasileiros, a mulher representada
no quadro, negra e trabalhadora, traz à tona um dos principais anseios dos
primeiros modernistas: construir as bases para pensar uma cultura genuinamente
brasileira, com olhos para o Brasil real e não para o Brasil que se pretendia
europeu.
Em entrevista à TV Brasil, a
curadora-chefe da Pinacoteca, Valéria Piccoli, diz que a obra traz uma
representação iconográfica que era recorrente nas obras de arte brasileiras
desde o século 19, mas que o colorido da obra não é naturalista, porque a
artista não quer tornar a imagem próxima do real. “Pelo contrário, ela trabalha
muito nesse contraste do verde, do laranja, que são cores que se chocam, que
não se harmonizam, e que criam justamente essa vibração, esse certo incômodo
quando você olha para elas”.
Mais tarde, em 1921, um almoço
no Belvedere Trianon, point da
alta sociedade paulistana da época, firma o compromisso da primeira geração de
modernistas paulistanos. Em um irônico discurso em homenagem ao escritor
Menotti Del Picchia, Oswald de Andrade confere o “primeiro grito coletivo dos
modernistas”, de acordo com o pesquisador José De Nicola. Para o autor, “a
gente pode dizer que a Semana foi preparada ao longo desse ano, de 9 de janeiro
de 1921 [data do almoço citado acima] até 13 de fevereiro de 1922 [data de
início da Semana de Arte Moderna]”.
No discurso, Oswald de Andrade
elucida o desejo dos primeiros modernistas em representar a cidade, suas
transformações e seus desvarios:
“S.
Paulo é já a cidade que pede romancistas e poetas, que impõe pasmosos problemas
humanos e agita, no seu tumulto discreto, egoísta e inteligente, as profundas
revoluções criadoras de imortalidades”.
(Trecho
do discurso de Oswald de Andrade, de 9 de janeiro de 1921. Retirado da obra
Semana de 22 – antes do começo, depois do fim, de José e Lucas De Nicola,
página 238)
O
DURANTE – Semana prematura, divertida e inútil
“Oh!
Semana sem juízo. Desorganizada, prematura. Irritante. Ninguém se entendia.
Cada qual pregava uma coisa. Uns pediam liberdade absoluta. Outros não a
queriam mais. O público vinha saber. Mas ninguém lembrava de ensinar. Os
discursos não esclareciam coisa nenhuma. Nem podiam, porque não havia tempo: os
programas estavam abarrotados de música. Noções vagas; entusiasmo sincero;
ilusão engraçada, ingênua, moça, mas duma ridiculez formidável. [...] A Semana
de Arte Moderna não representa nenhum triunfo, como também não quer dizer
nenhuma derrota. Foi uma demonstração que não foi. Realizou-se. Cada um seguiu
para seu lado, depois. Precipitada. Divertida. Inútil.”
(Trecho
do periódico Crônicas de Malazarte-VII, publicado na Revista América Brasileira
em abril de 1924. Retirado da obra Mário de Andrade – em busca da alma
brasileira, de Jason Tércio, página 185)
Entre 1923 e 1924, Mário de
Andrade publicou o periódico mensal Crônicas de Malazarte,
na revista América Brasileira. O trecho acima é publicado em 1924, na 28ª
edição da revista. O excerto traz uma avaliação da Semana e, também, termos já
usados anteriormente por Mário para descrever o trabalho dos modernistas.
“Inútil”, diz Mário, tanto na crônica quanto no prefácio de Pauliceia
Desvairada, intitulado “Prefácio Interessantíssimo”, considerado o primeiro
texto que pontua os anseios dos modernistas participantes da Semana.
“Está
fundado o Desvairismo.
Este prefácio, apesar de interessante, inútil.
(...)
Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem
pensar tudo que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir,
como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio
Interessantíssimo.
Aliás muito difícil nesta prosa saber onde
termina a blague, onde principia a seriedade. Nem eu sei.”
(Trecho
inicial do Prefácio Interessantíssimo, da obra Pauliceia Desvairada, de Mário
de Andrade, lançada em 1922)
A escolha destas palavras por
Mário de Andrade – “desorganizada”, “prematura”, “irritante”, “inútil” – faz
parte da concepção artística proposta não somente pelo autor, mas por outros
participantes da Semana. A “blague”, sinônimo de piada, caminha junto com a
seriedade.
Para o pesquisador José de
Nicola, a Semana de 22 “foi um grande grito coletivo, grande grito público que,
na verdade, representou uma série de conquistas, de renovações, de tentativa de
inovar esteticamente a arte brasileira, ao longo de toda uma década. E a Semana
acabou sendo esse momento em que aflorou, em que esse grito se tornou público”.
A Semana de Arte Moderna, ao
contrário do que o nome indica, durou apenas três dias. Literatura, artes
plásticas e música foram a tônica da programação. Dentre os escritores
participantes, além de Mário de Andrade, estão Oswald de Andrade, Graça Aranha,
Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, Sérgio Milliet, Tácito de Almeida,
Ronald de Carvalho, Luís Aranha e Agenor Fernandes Barbosa. Nas artes
plásticas, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro, John Graz,
Regina Graz, Zina Aita, Yan de Almeida Prado e Antônio Paim Vieira. Na escultura,
Victor Brecheret, Wilhelm Haarberg e Hildegardo Velloso. Na música, Heitor
Villa-Lobos, Ernani Braga, Lucília Villa-Lobos, Guiomar Novaes, entre outros.
Tarsila do Amaral,
artista-referência do modernismo brasileiro, não participou do evento. Contudo,
de acordo com Tarsilinha do Amaral, sobrinha-neta da artista, Tarsila sabia das
articulações para a realização da Semana. “Apesar de ela não ter participado da
Semana, ela ficou sabendo através das cartas da Anita [Malfatti], pois elas
eram amigas. A minha tia estava em Paris estudando”, diz.
Boa parte dos artistas
participantes da Semana, assim como Tarsila, viveu um tempo em terras
europeias. O contato com movimentos artísticos, como o expressionismo e o
cubismo, trouxe uma gama de aprendizados que, de volta ao Brasil, foram
mesclados a figuras, cores e formas que remetiam ao imaginário nacional, que
traziam à tona um Brasil indígena, africano, caboclo e caipira que, até então,
não era objeto de vislumbre artístico.
No campo da literatura, a escrita
livre, sem métrica, a experimentação, a renovação da linguagem, o
coloquialismo, o “escrever sem pensar”, a sátira, o deboche e a ironia são as
características propostas para o texto. Uma clara afronta aos ideais propostos
pelo movimento artístico vigente: “No início do século 20, o modelo de poesia
no Brasil era um modelo parnasiano, que era o soneto parnasiano rimado com
verso de ouro certinho, quadradinho. É exatamente contra esse movimento que os
modernistas vão lutar. Eles vão combater esse modelo de poesia”, enfatiza José
De Nicola.
Durante o segundo dia do
evento, Ronald de Carvalho leu o poema Os Sapos, de
Manuel Bandeira, que não participou da Semana devido a uma crise de
tuberculose. O texto, vaiado pelo público, falava diretamente aos poetas parnasianos.
O
sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede
como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.
O
meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.
(Trecho
de “Os Sapos”, poema publicado em 1919, no livro “Carnaval”, de Manuel
Bandeira)
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