Além disso, a defensoria
pública estadual acrescenta que foram descumpridos artigos da Lei Geral de
Proteção de Dados (LGPD) e da Constituição Federal, o que representa um dano
moral indenizável.
"A gente pode atender
coletivamente e ajuizar uma ação civil pública, pedindo danos morais coletivos,
causados contra a sociedade inteira. Aí, se o município for condenado, o
dinheiro vai para algum fundo público. Além disso, cada pessoas que sofreu com
essa situação pode procurar a Defensoria para uma ação individual",
explica o defensor público.
No sábado (20), uma publicação
foi feita no diário oficial do município para informar sobre a suspensão
do benefício de passe livre nos transportes municipais, concedido a cerca de
600 pessoas que têm HIV, anemia falciforme e fibromialgia. O informe, no
entanto, foi acompanhado de uma lista com o nome de todas as pessoas que tinham
o benefício e suas respectivas condições.
A publicação ficou no ar por
algumas horas e depois foi retirada pelo poder municipal. A Secretaria
Municipal de Mobilidade Urbana publicou uma nota, em seguida, afirmando que a
lista foi publicada por "uma falha no sistema" e que "lamenta
profundamente o ocorrido". Uma sindicância foi criada para apurar o caso e
terá 15 dias, contando a partir desta segunda-feira (22), para produzir um
relatório conclusivo.
O Ministério Público da Bahia
(MPBA) também instaurou um procedimento administrativo para apurar o caso
e "a eventual inobservância das normas legais relacionadas ao direito à
cidadania". Na terça-feira (23), o MPBA oficiou o município de Feira de
Santana, para que preste esclarecimentos quanto às circunstâncias que
envolveram a divulgação indevida no diário oficial.
Reparação
O defensor público à frente do
caso já se reuniu com representantes da sociedade civil na última segunda-feira
(22), para debater formas de reparação pelo ocorrido. Outra reunião foi marcada
para quinta-feira (25), quando é esperada a participação de algumas das 280
pessoas com hiv que tiveram seus nomes expostos. O defensor também já conversou
com representantes da Prefeitura.
"A gente pode negociar
uma solução extrajudicial. A Prefeitura pode aceitar fazer um termo de
ajustamento de conduta, que é um instrumento que a gente tem, para evitar uma
ação coletiva. Pode se comprometer a não revogar esse benefício e também
pode oferecer algum valor em virtude do dano. Eles reconheceram o erro e se
demonstraram dispostos a procurar caminhos para que a gente possa resolver sem
ser discutido na Justiça, o que a gente sabe que tem o ônus da demora,",
complementa.
A Sociedade Brasileira de
Infectologia (SBI) também divulgou uma nota manifestando "profunda
indignação" pelo ocorrido e solidariedade às vítimas.
"A exposição de
informações médicas sigilosas constitui violação da Constituição Federal, da
Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), das normas do Sistema
Único de Saúde (SUS) e dos princípios éticos que orientam a prática médica",
reforça a entidade.
A SBI reivindicou que o caso
seja apurado com rigor e que os responsáveis sejam penalizados, considerando
que "situações como esta não apenas ferem a dignidade das pessoas
envolvidas, mas também as expõem ao estigma, à discriminição e a consequências
irreparáveis". A SBI reiterou ainda que "a proteção da privacidade e
da dignidade das pessoas vivendo com HIV é um direito inegociável."
O caso também mobilizou
organizações e ativistas pelos direitos das pessoas com HIV. O Grupo Pela
Vidda do Rio de Janeiro, primeira organização do tipo criada no Brasil, está
redigindo uma carta de repúdio e pretende acionar o Ministério Público Federal
para apurar o caso.
"É inadmissível que
qualquer órgão público, seja ele qual for, faça divulgação de sorologia. Já se
passaram mais de 40 anos da epidemia (de aids), e a gente ainda ainda continua
lutando contra o estigma, para que as pessoas tenham privacidade, para que elas
possam viver suas vidas e tenham o direito de revelar para quem elas
acharem que devem revelar", afirma o presidente da organização Marcio
Villard.
Estigma
O presidente do Grupo Pela
Vidda acrescenta que situações como essa reforçam o estigma sobre a própria
doença. "O HIV, hoje, não é aquele HIV dos anos 80, mas as pessoas ainda
guardam aquele quadro de pessoas morrendo, em estado terminal. Hoje, as pessoas
podem descobrir o HIV e viver normalmente. Mas ainda há uma certa dificuldade
de entender que, quanto mais cedo se faz o teste e quanto mais cedo se
descobre e trata, a pessoa não adoece. Mas, justamente por conta do
preconceito, elas preferem não fazer".
O pesquisador e ativista João
Geraldo Netto destaca que casos desse tipo podem afastar ainda mais as pessoas
com suspeita da doença ou diagnóstico confirmado, dos serviços de saúde e de
outras políticas públicas que podem beneficiá-las.
"A gente ainda precisa
lidar com uma coisa muito forte, que é o preconceito e o autopreconceito. As
pessoas podem se recusar até mesmo a tomar o medicamento, porque elas não
querem se cadastrar no serviço de saúde, por saber que as informações dela vão
estar no sistema".
"Todos os dados de saúde
são sigilosos, mas quando a gente fala de HIV, a gente está colocando um
problema de saúde que é carregado de muito preconceito, e esse
preconceito também se transforma em discriminação. Existem pessoas que,
quando têm o HIV revelado, são demitidas, pessoas que não conseguem ter
relacionamentos. Existem pessoas em cidades pequenas que, uma vez que é
descoberto que ela vive com HIV, ela vai ouvir comentários sobre a vida pessoal
dela pelo resto da vida", completa Netto.
Para o Diretor de Defesa da Diversidade da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Rio de Janeiro, Nélio Georgini, a prefeitura baiana violou o direito que essas pessoas têm de não revelar sua condição publicamente. "Essas pessoas tiveram um direito fundamental retirado. Isso violenta um grupo que já é vulnerável. E nós temos que ver a interseccionalidade. Porque essas pessoas podem ser de outros grupos vulneráveis como os LGBTs, o que também pode levar a outro preconceito".
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