sábado, 21 de junho de 2025

Conheça o escotismo, que tem mais de 100 anos no RN

Um movimento que nasceu na Inglaterra em 1907 e, uma década depois chegou ao Rio Grande do Norte por meio do poeta parnasiano Olavo Bilac, o escotismo é detentor de importantes iniciativas no Estado, como a campanha de combate à Gripe Espanhola, o atendimento a flagelados da seca e a construção da Policlínica do Alecrim. Mais de um século depois, a atividade, que tem como principal precursor no RN o professor Luiz Soares de Araújo, segue como símbolo de adaptação às mudanças dos últimos tempos para manter um propósito educacional que tem como valores o respeito, a amizade e o cuidado com a natureza, com cerca de 4 mil escoteiros em mais de 50 municípios potiguares.

O escotismo foi fundado por Robert Baden-Powell, um soldado britânico que deixou o Exército para se dedicar exclusivamente ao movimento, que teve rápida expansão e chegou ao Brasil em 1910. A partir de 1914, com a criação da Associação Brasileira de Escoteiros, a atividade espalhou-se rapidamente pelo País com o apoio de Olavo Bilac, presidente da Liga de Defesa Nacional, grupo que tinha como objetivo despertar o civismo nacional, haja vista a aproximação dos 100 anos da nossa Independência.

“A intenção de Bilac era criar batalhões de escoteiros. Ele escreveu a Henrique Castriciano, vice-governador do RN à época, pedindo que fossem empregados esforços para a criação do escotismo por aqui, o que, de fato, foi feito. Vários personagens históricos daquela época se juntaram a Castriciano para a criação da Associação Brasileira de Escoteiros no Rio Grande do Norte, em 1916, mas que só foi fundada oficialmente no ano seguinte, em 24 de junho. Nessa fase, entram dois personagens muito importantes – o professor Luiz Soares e o comandante Afonso Monteiro Chaves”, descreve Thiago Simplício, presidente da Associação de Escoteiros do Alecrim (AEA) e vice-presidente regional da Região Escoteira do RN.

Soares era o diretor do Grupo Escolar Padre Miguelinho, enquanto Monteiro Chaves era capitão dos Portos. A dedicação dos dois serviu de inspiração para escoteiros que aderiram, décadas depois, ao movimento. É o caso de Carlos Pinto, de 62 anos, conselheiro da AEA. Ele carrega na memória histórias que o marcaram profundamente ao longo de suas atividades, como as enchentes na cidade de Santa Cruz, nos anos 1980, após o transbordamento de uma açude e de uma barragem em Campo Redondo, no município vizinho.

“Fui convocado, junto a outros escoteiros de Natal, para recolher donativos. Fiz um trabalho em conjunto com as Forças Armadas, no Palácio dos Esportes, em Petrópolis [bairro da zona Leste de Natal]. Reunimos diversos gêneros alimentícios e roupas. Me lembro que foi um período de muito inverno – o Estado passou uma semana sem energia – então, nossa atuação foi muito importante”, relata Carlos Pinto, que começou sua participação no escotismo aos 10 anos.

César Barbosa conheceu e encantou-se pelo movimento aos seis anos, em 1967, mas só entrou para o grupo em 1971. Depois do casamento, em 1982, ele decidiu deixar o escotismo para cuidar da família, mas retornou em 2018 para ser assistente do Museu Escoteiro da AEA, onde permanece até hoje. “Me lembro de quando me tornei escoteiro. Era uma quinta-feira pela manhã. Estávamos no pavilhão da sede, com a banda de música. Foi tudo muito bonito. Quando vi aquilo me encantei”, relembra César, hoje com 63 anos.

Contribuições

O movimento escoteiro estimula hábitos de contemplação da natureza, solidariedade e formação de uma cultura de paz. No Rio Grande do Norte, esses objetivos se traduziram em várias ações práticas ao longo dos anos, com significativos impactos para a sociedade ainda nos dias atuais. A criação do Hospital Geral Policlínica do Alecrim, em 1947, é um exemplo claro disso.

“O professor Luiz Soares era um homem muito inquieto, que viu no escotismo a oportunidade de moldar a formação dos jovens e de fazer com que fosse garantido, na prática, um retorno à sociedade”, afirma o presidente da Associação de Escoteiros do Alecrim, Thiago Simplício. “Ele tinha um filho médico, então, em função disso, surgiu o interesse em criar um hospital no bairro. Em 1923 foi instalado um ambulatório na sede da Associação, na Escola Padre Miguelinho. Foi um projeto bancado pelo Governo Federal”, acrescenta Simplício.

O terreno onde hoje funciona a Policlínica era o campo de treinamento dos escoteiros. Com a necessidade de expandir a prestação de serviços à sociedade, o hospital foi transferido para lá e incorporado à Liga Norte Riograndense Contra o Câncer na década de 1990. Antes da atuação que resultou na construção da Policlínica, no entanto, o movimento teve papel contundente no combate à Gripe Espanhola no RN. Thiago Simplício conta que os escoteiros montaram um hospital de campanha onde hoje é o Colégio Nossa Senhora das Neves, que realizou mais de 10,4 mil atendimentos na década de 1930.

“Fora isso, foram atendidas mais de 300 pessoas em domicílio. Por esse trabalho nossos escoteiros receberam condecorações do Governo do Estado, como a Comenda Cruz de Ferro. Foi nessa época também que criamos a primeira banda de escoteiros do Brasil, que revelou maestros e músicos de bandas militares como [o paraibano] Cachimbinho, um dos maiores instrumentistas do País”, pontua Thiago Simplício. Nos anos 1950 o escotismo potiguar se destaca pela criação das Faculdades de Odontologia, Farmácia e Direito, integradas à Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) anos depois.

“O professor Luiz Soares via uma necessidade de ampliar a educação do jardim de infância até o ensino superior. Então, ele buscou criar, por iniciativa própria, a Faculdade de Odontologia e Farmácia. Os primeiros estudos foram aqui na associação, com aulas experimentais. Depois ele atuou na criação da Faculdade de Direito e na criação da Escola Profissional do Alecrim, que viria a ser uma escola profissionalizante”, descreve o presidente. Além disso, o movimento teve atuação na disseminação do escotismo pelo Brasil, marcada pela ida de diversos integrantes a São Paulo a pé em 1923, com passagens por outras unidades federativas.

A viagem foi cercada de desafios numa época de quase nenhuma estrutura viária, como a existência de pontes. Segundo Thiago Simplício, há registros de grupos de Alagoas oriundos da empreitada adotada pelos escoteiros potiguares. A viagem terminou com um jantar oferecido aos potiguares pelo então governador de São Paulo, Washington Luís. O movimento também por uma forte campanha de saúde em 2012 contras hepatite. “Foram impactadas 300 mil pessoas. Os escoteiros distribuíram material educativo e de chamamento à população para vacinação em todos os municípios do RN”, afirma Carlos Pinto.

RN tem um museu com memórias do escotismo

As memórias do escotismo potiguar estão retratadas em um museu que fica no Instituto Padre Miguelinho, no Alecrim. São cartas e peças, como lenços, uniformes e moedas próprias utilizadas em acampamentos, além de documentos que ajudam a manter vivas as histórias do movimento. O local está aberto à visitação aos sábados, das 14h às 17h. Thiago Simplício diz que a Associação está em busca de recursos para garantir o funcionamento diário do museu.

Dentre os registros estão cartas trocadas entre Baden-Powell e o professor Luiz Soares, que mostram a relação cordial entre os dois. “São escritos, em geral, de agradecimento. O professor contava como estava o grupo e ele [Baden-Powell] respondia agradecendo, sempre de forma muita educada, pelas notícias daqui”, explica César Barbosa, assistente do museu. Também estão disponíveis no acervo informações que indicam uma participação para além das preocupações sociais, a exemplo de um registro sobre a comunidade de Uruaçu, em São Gonçalo do Amarante, conhecida pela história dos Mártires Católicos.

Um cruzeiro instalado na comunidade pelos escoteiros do Alecrim em 1932 fez com que o bispo de Natal – à época, Marcolino Dantas – trouxesse a celebração dos Mártires para a capital, garantindo maior visibilidade à história daqueles que se tornariam, mais tarde, padroeiros do RN. O legado do escotismo potiguar tem como um dos desafios resistir às mudanças culturais e tecnológicas da atualidade para que o movimento se mantenha vivo.

Mas Carlos Pinto garante que, apesar das dificuldades, esse é um desafio que tem sido superado. “Claro que há resistência, mas é um movimento em atualização constante, liderado e conduzido pelos jovens. Então, não existe a preocupação de que ele fique estagnado no tempo. No escotismo, o jovem é chamado a se especializar em vários minicursos como aqueles voltadas à tecnologia da informação, saúde e outras centenas de especialidades, além de despertar o desejo de servir”, avalia Pinto.

Felipe Salustino
Repórter

Tribuna do Norte

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