Após o assassinato brutal do
congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, no Rio de Janeiro, o Comitê Nacional
para os Refugiados (Conare), colegiado que conta com representantes do
Ministério da Justiça, aprovou nesta semana a criação do Observatório da
Violência contra Migrantes e Refugiados. De acordo com os dados da Polícia Federal,
o Rio Grande do Norte registrou, em 2021, cerca de 14 mil migrantes. Destes,
259 estavam na condição de refugiados, mesma situação de Moïse.
Thales Dantas, presidente do Comitê Estadual Intersetorial de Atenção aos Refugiados, Apátridas e Migrantes do RN (Ceram/RN), explica que refugiados, assim como apátridas, são migrantes em condições “especiais” e representam minoria no Estado. A maioria está fora dessas condições e vem ao RN para estudar. É o caso de portugueses, italianos, argentinos, espanhóis. Em relação aos refugiados, grande parte, segundo o Ceram, está concentrada em Natal e Mossoró.
Todos são de origem venezuelana, país que vive uma crise migratória, acelerada especialmente desde 2015. Do total de migrantes em situação de refúgio, cerca de 65 vivem em Natal, de acordo com a Secretaria Municipal do Trabalho e Assistência Social (Semtas).
Na capital, muitos deles estão no Centro de Acolhida e Referência (CARE), uma antiga escola, na Avenida Antônio Basílio, na zona Sul da cidade. São 15 famílias vivendo por lá atualmente. Esta semana A TRIBUNA DO NORTE esteve no local, mas não teve permissão para percorrer as dependências do prédio.
Os moradores não quiseram conceder entrevista. A maioria é indígena, não fala português e compreende pouco o espanhol. O CARE é resultado de um termo de cooperação entre o Governo do Estado e a Prefeitura do Natal, assinado em julho de 2020 para acolhimento de pessoas em condição de refugiados, migrantes e apátridas no Município.
A responsabilidade da infraestrutura do local é do Governo do Estado. Thales Dantas, do Ceram, disse à TN que a Secretaria de Estado da Infraestrutura (SIN) elaborou um projeto de reforma do espaço para atender o acolhimento de famílias refugiadas, apátridas e migrantes. “Estamos na fase de captação de recursos junto ao Ministério da Cidadania para financiar essa reforma”, esclareceu.
À Semtas, cabe garantir a segurança alimentar das famílias, além de prestar acompanhamento socioassistencial e administrar o prédio. “A Secretaria tem uma equipe de referência para o acompanhamento dessas famílias. São entregues semanalmente proteínas e cestas básicas para três refeições. Já a entrega de material de higiene e limpeza é feita mensalmente”, informou a pasta.
As famílias que vivem no CARE são da etnia Warao. Muitos deles vão às ruas em determinados momentos do dia para conseguir dinheiro. Sob o sol escaldante da última terça-feira (8), Maria estava com os três filhos pequenos no cruzamento da Avenida Miguel Castro com a Rua Jaguarari, na expectativa de conseguir alguns trocados para comprar alimentos e itens para os pequenos. Além dos três que a acompanhavam, Maria tem mais dois filhos.
“Não tenho dinheiro para comprar fralda. O frango é muito caro”, disse a mulher em um português difícil de se compreender. Em outro cruzamento perto dali, mais uma cena: um casal exibe uma placa com pedido de doações. Nenhum dos dois quis falar com a reportagem, mas o homem disse informalmente à TRIBUNA que está no Brasil há dois anos e que, se a situação é difícil por aqui, na Venezuela é ainda pior.
O casal tem dois filhos pequenos: a caçula, prestes a completar dois anos, é brasileira, nasceu em Roraima. O homem informou, ainda, que costuma conseguir algo entre R$ 10 e R$ 30 por dia nas ruas. A exemplo de Maria, ele e a esposa moram no CARE. O prédio onde o Centro de Acolhimento funciona é de responsabilidade do Estado.
Burundiano vive em condição de
apátrida no RN
Segundo Thales Dantas, migrantes em condição de apátrida são raros no Brasil. Apátridas são cidadãos que, uma vez perdida a nacionalidade de origem, não conseguem adquirir outra. Andrimana Buyoya Habizimana, de 41 anos, está nesta situação desde que chegou ao Brasil, há 15 anos. Ele está no RN há 12 e trabalha atualmente como almoxarife, na Policlínica da Liga Contra o Câncer, no Alecrim. Abin, como é conhecido por aqui, deixou seu país natal, o Burundi, quando ainda era criança, fugindo da guerra civil.
Antes de chegar ao Brasil, ele viveu em outros países do continente africano. Caçula de cinco irmãos, e com os pais já falecidos, o almoxarife comenta que as maiores dificuldades ao pisar em solo brasileiro foram provocadas pela falta de domínio da língua portuguesa e por problemas financeiros.
“O idioma me gerou muito problema de comunicação. A adaptação à cultura foi difícil. Também teve a questão do emprego. Antes da Liga, tentei trabalho no Sine da Cidade da Esperança, mas, sem o domínio do português, não conseguia serviço. Então, fui trabalhar na feira. Depois, voltei a tentar emprego de carteira assinada, até chegar à Policlínica”, relata. Abin trabalha na Policlínica há mais de 10 anos.
Apesar de uma década e meia no Brasil, o almoxarife ainda não conseguiu se naturalizar. O processo em busca de reconhecimento da nova nacionalidade começou há sete anos e se arrasta até hoje. “Cheguei ao País sem nenhum documento e não tinha como comprovar minha nacionalidade”, afirma.
“Entrei com um processo na Justiça do Rio Grande do Norte e recorri à Justiça Federal. Ambas foram favoráveis à recuperação dos meus direitos, mas, a AGU [Advocacia Geral da União] sempre recorria e o processo era empurrado mais para frente. Fui recorrendo e a questão foi parar no STF [Supremo Tribunal Federal]. Mas, por causa da alta demanda que existe lá, meu processo ficou preso”, acrescenta Abin.
Apesar das dificuldades na chegada ao Brasil e da condição de apátrida, ele considera a vida por aqui tranquila e confessa: se incomoda com a discriminação. “Graças a Deus, nunca vivi casos de violência física, mas já sofri preconceito. Percebo que as pessoas se assustam com negros. É uma questão que me incomoda muito. Somos todos iguais e devemos ser tratados como iguais”, desabafa.
O burundiano sonha em conquistar a nova nacionalidade para poder viajar e retornar ao seu país, mas somente como visitante. “O Burundi hoje sofre com graves problemas econômicos, então, gostaria apenas de visitá-lo”, conta. Abin reside atualmente no bairro de Neópolis, na zona Sul de Natal. Ele se diz satisfeito com o momento em que vive.
“Hoje, não estou vivendo mal. Quero construir uma família legal e fazer as coisas como todo mundo faz, com direitos iguais, que é o mais importante”, diz. Abin é solteiro e pai de uma menina de oito anos, que mora com a família em Currais Novos.
Venezuelanos chegaram ao
Estado em 2018
O presidente do CERAM/RN,
Thales Dantas, explica que, alguns refugiados venezuelanos integram a Operação
Acolhida, do Governo Federal . A Operação foi criada em março de 2018, como uma
forma de resposta do governo brasileiro ao grande fluxo migratório proveniente
da Venezuela e oferece assistência emergencial aos refugiados e migrantes
daquele país que entram no Brasil pela fronteira com o Estado de Roraima.
Parte dos refugiados venezuelanos é indígena. “Normalmente são aqueles que estão no sinal pedindo dinheiro. Existem vários motivos pelos quais eles estão nesta situação. Um deles é porque não chegaram aqui pela Operação do Governo Federal. Já os não indígenas, geralmente, conseguem ser melhor acolhidos”, afirma Dantas.
Segundo ele, o Ceram faz o acompanhamento junto a essas pessoas no sentido de buscar inseri-las na sociedade. “As providências para a elaboração da documentação desses refugiados na Polícia Federal fica a cargo do Estado. Também temos um trabalho de assessoramento técnico junto aos municípios. Mas a inserção dessas pessoas na sociedade é um processo muito lento. Poucos falam o espanhol e menos ainda arriscam o 'portunhol'”, conta.
“O refugiado é uma condição jurídica bem específica que precisa dos seguintes pontos para receber tal classificação: o Governo Federal deve declarar a situação vivenciada em determinado país como sendo de refúgio; depois de reconhecido pelo Governo Federal, o processo é bem lento e demorado junto ao Comitê Nacional para Refugiados. O prazo para finalizar o procedimento, no Conare, demora três anos, em média”, detalha.
“Além disso, a pessoa pode pedir refúgio numa embaixada ou consulado do Brasil e alegar perseguição e situação de desrespeito aos direitos humanos”, acrescenta. O presidente do Ceram chamou atenção para o fato de que muitos migrantes, mesmo que não estejam em condição de refugiados, se submetem a trabalhos extremamente precarizados, já que estão no País nenhum tipo de documentação.
“Casos de xenofobia envolvendo trabalho análogo à escravidão não são isolados”, diz. A preocupação aumenta, segundo ele, porque essas pessoas estão expostas a variados tipos de violência, a exemplo do que o ocorreu com Moïse, no Rio.
“Há africanos que chegam aqui
de de maneira irregular. Sem documentação, elas ficam com medo de
procurar a Polícia Federal. Então, a gente também faz o atendimento dessas
pessoas. Sem documentos, muitos trabalham fazendo bicos. Ou seja, estão
expostos a situações como a que aconteceu com Moïse (trabalhar, mas não receber
o salário, ir reclamar e sofrer agressões físicas)”, aponta.
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