Novas pesquisas reacenderam o
debate sobre o local exato onde a esquadra de Pedro Álvares Cabral aportou em
abril de 1500, na terra que viria a se chamar Brasil. A partir de análises
numéricas da carta de Pero Vaz de Caminha, aliadas a expedições de campo, o
movimento de reabertura do debate, provocado pela física e a revisão minuciosa
da carta de Caminha, reacende questionamentos sobre um dos episódios fundadores
da história brasileira e coloca o Rio Grande do Norte no centro dessa disputa
narrativa que pode redesenhar a própria concepção do “Descobrimento do Brasil”.
O estudo mais recente, publicado no Journal of Navigation, da Universidade de Cambridge, foi conduzido pelos físicos Carlos Chesman (UFRN) e Cláudio Furtado (UFPB). Eles catalogaram os dados numéricos da carta de Caminha e os correlacionaram com rotas prováveis, ventos, correntes marítimas e observações feitas em expedições no litoral do RN. Chesman afirma que a equipe cruzou documentos e medições para reconstruir o trajeto descrito: “O que a gente fez foi algo interdisciplinar. A gente pegou um documento histórico e fomos analisar os dados da parte que a gente domina, que são exatamente os dados numéricos”.
Segundo o pesquisador, as
evidências apontam que a trajetória que Cabral fez, partindo de Cabo Verde até
visualizar sinais de terra, corresponde a 4 mil quilômetros nas unidades
atuais. “Se você fizer uma rota usando mapas de hoje, seguindo os ventos, saindo
da região do Cabo Verde, corresponde exatamente à chegada no litoral do Rio
Grande do Norte. Essa é a primeira evidência numérica”, explica.
A segunda evidência numérica
do estudo também se baseia na carta de Pero Vaz de Caminha quando é descrito
que o monte (Pascoal) foi visto a, aproximadamente, 40 quilômetros do litoral.
A expedição de Chesman partiu então para o mar até essa mesma distância e
fotografou o que se via a olho nu, tendo em vista que em 1500 não havia
lunetas, nem telescópios. “A gente conseguiu visualizar o que está descrito na
carta: um monte muito alto e arredondado e outros ao sul à esquerda. É
exatamente essa descrição que Pero Vaz escreveu”, destaca o pesquisador.
Dentro dessa perspectiva da
chegada dos portugueses primeiramente no RN, a visão difere do que se cogitava
anteriormente. O monte descrito não se trata do Pico Cabugi, que também pode
ser visto pelo mar no litoral norte potiguar, segundo Chesman. “A formação
pontiaguda não está descrita na carta e por isso não corresponde nem ao Pico
Cabugi nem ao monte da Bahia, que tem formato de pico. O estudo de topografia
que a gente fez aponta para o Monte Serra Verde, em João Câmara”.
Além do relevo, a equipe
analisou dados de batimetria descritos por Caminha. Essas informações, que
relacionam profundidade e distância da costa, permitem inferir a aproximação da
esquadra. Para Chesman, esse conjunto de dados também converge para o litoral
potiguar. “Com essa batimetria, a gente fez três rotas: duas aqui e uma lá na
Bahia. As duas rotas mais próximas são exatamente aqui”, explica.
A pesquisa refere-se ainda ao
marco português fincado na atual praia do Marco, em Pedra Grande, datado de
1501. Segundo o pesquisador, esse vestígio reforça a hipótese potiguar, com
base em documentos levantados pelo escritor e pesquisador Manoel Neto Cavalcanti.
“Então, o marco existir aqui é um fato a favor da passagem de Cabral por aqui
antes de chegar para fazer o povoamento lá em Porto Seguro”, atesta Chesman.
O escritor Manoel Cavalcanti,
que há décadas estuda a carta de Caminha e lançou obras sobre o tema, também
reforça seu posicionamento sobre a chegada de Cabral ao Rio Grande do Norte.
Para ele, a análise precisa do documento original tem sido prejudicada por
traduções equivocadas e interpretações distorcidas. “A carta é o único
documento realmente certificado escrito no palco do acontecimento, mas há
muitas distorções a respeito disso. Por exemplo, onde não tinha vírgula,
colocaram, o que altera a interpretação”, diz. Ele argumenta que pequenas
alterações mudam sentidos e comprometem interpretações históricas.
O escritor ressalta que a nova
versão dos fatos agora também é respaldada pela ciência com a pesquisa dos
físicos Chesman e Furtado, mas o debate enfrenta resistência, muitas vezes por
rejeição prévia. “As pessoas muitas vezes criticam pelo simples fato de ser do
contra”, afirma.
Impactos
Manoel Cavalcanti acredita
que, uma vez aceita e oficializada, a versão do descobrimento do Brasil pelo
Rio Grande do Norte poderia trazer benefícios econômicos ao estado, além do
reconhecimento de sua importância histórica. “A região de Porto Seguro tem
cerca de 70 mil leitos, ou seja, a história movimenta o turismo com cerca de 1
bilhão de reais por ano. Se explorássemos somente o nosso Marco de Touros, 10%
disso significaria 100 milhões incrementados no turismo”, estima.
O estudo potiguar contraria a
interpretação oficializada desde o século XIX, quando o Visconde de Porto
Seguro definiu a Bahia como ponto de chegada com base em um documento do mestre
João, que mencionava latitude aproximada de 17 graus.
Apesar do avanço científico, o
pesquisador Carlos Chesman ressalta que a consolidação da nova interpretação
depende do debate acadêmico. “A maioria é quem vai dizendo se algo realmente é
verdadeiro”, diz. Um colóquio científico para debater o estudo está sendo
organizado por Chesman para o ano que vem, no Rio Grande do Norte.

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