A cara de raiva e a boca fechada diante do prato é cena comum nos primeiros anos de vida de uma criança. A chamada seletividade alimentar infantil é uma fase normal da formação de personalidade dos pequenos, mas que pode ser ainda mais difícil para eles e os pais se não for vivenciada com os devidos cuidados. E para as famílias com crianças dentro do Transtorno do Espectro Autista (TEA), o momento pode ser ainda mais delicado. A seleção alimentar pode ser tão severa, que a introdução de novos alimentos exige um trabalho constante de observação, adaptação e acolhimento.
Normalmente, a seletividade
alimentar começa a dar seus primeiros sinais a partir de um ano e meio a dois
anos de idade, segundo a nutricionista e professora Eva Andrade. “Isto se dá
devido à questão de maturidade, de formação de personalidade e preferências
alimentares. É algo esperado, a criança está formando suas aceitações, escolhas
alimentares e sua personalidade. Começa a influir também nas preferências do
que ela gosta e do que não gosta”, diz.
Uma fase comum no
desenvolvimento infantil, mas sujeita também a transtornos quando começa a
atrapalhar a nutrição da criança. “Quando a criança começa a rejeitar um grande
número de alimentos e tem uma dificuldade de aceitar novos alimentos, é um
sinal de que essa seletividade, que devia ser só uma questão de preferência
alimentar, já está se encaminhando para uma questão de saúde”, explica.
É o ponto em que a
seletividade alimentar pode prejudicar o desenvolvimento da criança, afetar seu
peso, e sua saúde em geral devido à carência nutricional. Uma alimentação muito
restrita dificulta a ingestão de micronutrientes. Isso porque as vitaminas e
minerais são encontrados em grupos alimentares diferentes. Em crianças, a
ingestão de vitaminas e minerais se torna ainda mais importante em virtude das
necessidades do organismo para o crescimento e desenvolvimento adequados.
A nutricionista ressalta que,
apesar de preferências alimentares serem normais, quando a criança passa a
aceitar só um tipo de alimento, e rejeita qualquer alimento novo, qualquer
textura diferente, o fato passa a ser um sinal de alerta. O cotidiano alimentar
passa a ser um problema, segundo Eva. “Se os pais vão sair com essa criança, e
precisa levar uma comida especial porque ela não aceita o que está disponível
no local, tem dificuldade de experimentar o que está fora de sua casa, é um
forte sinal de alerta”, diz.
Estratégias alimentares
Para lidar com a seletividade
infantil, algumas estratégias podem ser levadas em conta. Eva Andrade explica
que os pais devem dar o exemplo quando se trata de alimentação. “É importante
que a criança veja seus pais se alimentando de forma variada, porque eles ainda
são o principal exemplo para ela. As crianças têm na fase da primeira infância,
principalmente o que a gente chama de ‘neurônio espelho’, na qual ela reproduz
o que os pais fazem”, diz.
Há dicas básicas, como
respeitar o apetite da criança, não insistir quando ela diz estar sem fome.
Tornar a refeição mais agradável, com vegetais cortados, coloridos, com o molho
favorito dela. Levar a criança ao supermercado, nas feiras ou na padaria, que
ela ajude a selecionar frutas, vegetais e outras iguarias saudáveis. Minimizar
distrações com telas de TV e celulares. Não oferecer sobremesas como recompensa
ou prêmio, pois isso pode aumentar o desejo delas por doces, reforçando que
essa é a “melhor” parte da refeição.
Há dez anos a jornalista e
empresária Nathália Coronado lida com os apetites infantis através da Petit
Poti, o primeiro restaurante para bebês de Natal. Por experiência cotidiana,
ela sabe que as primeiras rejeições dos pequenos são os vegetais. “As pessoas
costumam oferecer muito no início da vida alimentar da criança, mas as próprias
famílias costumam não ter o hábito de consumir legumes, frutas e verduras, e
vão tirando da alimentação”, diz.
Ao parar de receber estímulos
para comer vegetais, a criança assimila a comida ultraprocessada dos pais e
passa a rejeitar os sabores naturais. Portanto, a estratégia que Nathália
oferece aos pais que a procuram, é oferecer uma introdução alimentar adequada,
começando com seis meses, estimulando a criança a ter um vasto repertório
alimentar com frutas, verduras e legumes. “A ideia é que o paladar dela seja
bem estimulado com vários sabores”, completa.
O cardápio da Petit atende
crianças de seis meses a dois anos de idade, sem restrição a crianças mais
velhas. A comida é vendida em forma de cubos congelados, onde tem tudo que se
espera de uma boa refeição, entre proteínas, legumes, cereais e grãos. Nathália
afirma que também estimula hábitos como levar a criança à cozinha para ver a
comida sendo feita, e a comensalidade – a refeição em família.
Autismo
Eva Andrade, que também atua
na produção técnica da Petit Poti, ressalta que a alimentação da criança
autista exige uma atenção especial. “Uma das comorbidades do autismo é a
seletividade alimentar, e muito se dá porque a criança já apresenta um descompasso
neurológico associado a uma alteração de microbiota que favorece essas
preferências mais extremas”, explica. São normalmente pacientes que já
apresentam um quadro de seletividade a vários alimentos, principalmente o
alimento novo, o que configura o quadro de autismo.
A seletividade alimentar da
criança autista, segundo a nutricionista, precisa ser melhor trabalhada com
terapia alimentar, porque ela tende a ser mais persistente, a ter maior
dificuldade para romper essa seletividade. “Então a gente precisa de terapias nutricionais
para conseguir reverter ou minimizar essa seletividade”, enfatiza.
A embaladora Stefania Régis,
mãe de Samuel Xavier, de cinco anos, conta que a partir dos dois anos de idade,
a seletividade alimentar do filho se manifestou de forma severa. “No começo da
introdução alimentar ele comia de tudo, mas logo passou a não comer mais. Quase
nada”, diz. O pequeno rejeita quase tudo entre vegetais e proteínas. De fruta,
come apenas banana; arroz, só de leite; macarrão, no início sem molho, e agora
só com ketchup; gosta de cuscuz; de carnes, só embutidos tipo hambúrguer,
salsicha e frango empanado.
A mãe conta que já consultou
um nutricionista, preocupada com o aporte nutricional de Samuel. O profissional
chegou a receitar um suplemento alimentar em pó, mas recomendou que os pais
seguissem observando as mudanças de gosto da criança, e se adaptando da melhor
forma a elas, sem forçá-lo. “A gente vai tentando, até encontrar algo que ele
goste. Há fases que ele muda de paladar. Cada alimento aceito é uma conquista”,
conclui.
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Tribuna do Norte
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