No centro do museu, repousa
uma imagem de gesso de traços gastos pelo tempo: a Princesa Isabel, com um
semblante grave, segura a Lei Áurea nas mãos. Mas o povo de Acari a conhece por
outro nome. “São Soubera”, dizem. A alcunha nasceu após um raio atingir a
escultura na década de 1970 — um rasgo no céu e no cimento. Desde então, quem
passava pela cadeia fazia o sinal da cruz e murmurava: “Se eu soubesse que ia
ser preso, não tinha feito tal coisa.” A ironia virou devoção, e a imagem da
princesa virou santo protetor dos que temiam o destino entre grades. São
Soubera: padroeira dos arrependidos tardios.
Desde 2021, a direção do museu está sob responsabilidade do historiador Adriano
Campelo, que também é pós-graduado em Arqueologia e Patrimônio. Ele coordena
uma equipe que não apenas mantém o acervo, mas também elaboram projetos de
educação patrimonial e envolvimento comunitário.
Com mais de 3 mil visitantes por ano, o museu se estrutura em módulos temáticos
que retratam atividades econômicas históricas do Seridó: pecuária, pesca,
algodão. Também há ambientações de uma casa sertaneja, com destaque para a
cozinha do queijo.
A cozinha foi reconstruída com telhas antigas, paredes de barro, utensílios
típicos. Tachos de cobre, peneiras, sacos de tecido e formas de madeira compõem
o cenário. Ali, é possível compreender como o queijo de coalho e de manteiga
eram produzidos em tempos de escassez. O leite vinha do curral, era fervido,
peneirado, moldado e armazenado. Nas palavras de Adriano, “um alimento de
sobrevivência na seca”.
O módulo da cotonicultura é igualmente impactante. Acari foi um dos principais
polos produtores de algodão mocó do país. A espécie, resistente à seca, era
plantada em fazendas familiares. A cidade possuía campo de sementes, usinas com
bulandeiras a vapor, estruturas de tracionamento animal para descaroçar o
algodão. Exportava para o mundo. “Acari competia com o algodão egípcio e
americano”, afirma Adriano.
As ruínas dessas usinas ainda existem. Algumas foram reaproveitadas como
armazéns ou pequenas fábricas. Ainda não fazem parte do circuito do museu, mas
há planos futuros para integrá-las. “Temos vídeos e imagens. Levar visitantes
para lá seria uma experiência poderosa”, diz ele.
Na parte superior do museu, acessível por uma escada antiga de madeira, está a
casa sertaneja. Quarto, sala, utensílios, fotografia, imagens religiosas. Uma
réplica do modo de vida de famílias do Seridó do século XX. O acesso limitado é
compensado por uma transmissão em tempo real via telão para visitantes com
dificuldades de mobilidade.
Módulo do algodão reconta a idade
dourada da economia de Acari
Foto: Divulgação
A preservação do prédio é um desafio. Construído em 1887, com estrutura de
madeira e barro, exige manutenção constante. Cupins, infiltrações, oscilações
de temperatura. A escada, original, também é alvo de preocupação. A iluminação
ainda é tradicional, mas a equipe sonha com um projeto cênico que valorize as
peças.
O museu também é um espaço de educação patrimonial. Uma cartilha produzida
pelos historiadores do equipamento traz textos acessíveis, fotografias e
propostas pedagógicas. Está disponível em PDF e QR Code, mas ainda não é
amplamente utilizada pelas escolas.
A maioria das visitas escolares vem de Natal, especialmente de escolas
privadas. Também há visitantes de outros estados e até do exterior. Famílias da
região são presença constante. Vaqueiros, em especial, se identificam com o
museu, que celebra a figura do sertanejo como herói histórico da resistência
nordestina.
Durante a tradicional Festa de Agosto, o museu realiza exposições temáticas,
lançamentos de livros e eventos culturais. Em 2025, celebra 35 anos de fundação
com uma programação especial: exposição comemorativa, lançamento de quatro
obras literárias de autores locais e inauguração de um arquivo histórico anexo.
Adriano Campelo também destaca o caráter comunitário do museu. O acervo foi
construído com base em doações espontâneas de moradores. Cada peça possui ficha
de identificação, nome do doador, ano de entrada e histórico. É um museu vivo,
alimentado por laços afetivos.
Adriano Campelo durante visita
guiada com vários estudantes| Foto: Divulgação
Em 2023, o museu foi contemplado com recursos para o projeto “Condutor Local
Mirim”, que formou crianças da rede municipal como guias culturais. No mesmo
ano, foi reconhecido oficialmente como patrimônio histórico e cultural do
Estado do Rio Grande do Norte, por lei sancionada pela governadora.
Para Adriano, esses reconhecimentos e conquistas importam, mas o centro de tudo
está no impacto cotidiano: “O museu conta a história de um povo que lutou e que
luta pela sobrevivência nesse sertão. Isso ajuda a entender o presente e agir
para o futuro.” Na cidade onde um dia o castigo dominava os cômodos, agora se
ensina memória, empatia e pertencimento.
Tribuna do Norte

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