Um dos motivos pelo qual o
crime chamou atenção foram os repetidos golpes no rosto da vítima, que se
encontrava indefesa e caída no chão do elevador. Segundo especialistas ouvidas
pela Agência Brasil, o ato carrega um simbolismo ancorado na cultura machista. “Agressores
normalmente atacam o feminino do corpo humano, (incluindo) rosto, seios e
ventre como um recado de que aquele corpo pertence a eles”, afirma a promotora
de Justiça do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), Valéria Scarance. Ela
destaca que agressores praticam atos de violência imbuídos de um sentimento de
posse e superioridade em relação às mulheres.
A antropóloga Analba Brazão,
que é educadora do SOS Corpo - Instituto Feminista para a Democracia, considera
que esses ataques contra a mulher em regiões como o rosto têm como objetivo
desfigurar a vítima.
“Atingir o rosto também
demonstra poder. Ele quer aniquilar aquela mulher e deixar visível a sua
marca”, lamenta.
Essas violências no corpo da
mulher e na expressão do feminino têm uma simbologia marcante, conforme aponta
Télia Negrão, pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). É o que acontece quando criminosos mutilam, por exemplo, os seios
ou a região genitais. “Há até chutes na área da barriga da mulher como
forma de destruir a sua capacidade reprodutiva posterior”, diz Télia, que faz
parte do Levante Feminista contra o Feminicídio e Transfeminicídio.
Quatro mulheres mortas por dia
De acordo com o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado na
semana passada, houve novo aumento no número de feminicídios, que chegou a
1.492 casos em 2024. O número representa quatro mortes de mulheres por
dia. É a maior quantidade desse tipo de crime desde 2015, início da série
histórica. Segundo o levantamento, 63,6% das vítimas eram negras. Além
disso, 70,5% tinham entre 18 e 44 anos e oito em cada dez foram mortas por
companheiros ou ex-companheiros. Os feminicídios dentro de casa são
maioria (64,3%).
Já os casos de tentativa de
feminicídio, como o ocorrido com Juliana, em Natal, foram 3870 no ano passado,
19% a mais do que no ano anterior. As agressões registradas contra mulheres
foram de 256.584 casos (em 2023) para 257.659 (no ano passado).
Para a promotora Valéria
Scarance, do MP-SP, desde a Lei Maria da Penha instaurou-se um “novo tempo” no
Brasil, em que a violência contra mulheres deixou o âmbito privado e ganhou
domínio público. “Antes, era comum que as pessoas não se manifestassem diante
de uma ‘briga de casal’. Mas, hoje, a sociedade está atenta a essas violências,
inclusive as que eram consideradas menos graves”, contextualiza.
Ao mesmo tempo em que a legislação brasileira é considerada uma das melhores
do mundo no combate ao feminicídio, as pesquisadoras apontam que discursos de
misoginia, até mesmo de autoridades públicas, cresceram com a ascensão de
partidos da extrema direita no mundo, incluindo o Brasil. Valéria Scarance
analisa que o aumento da violência contra as mulheres seria uma
espécie de reação da estrutura machista da sociedade ao empoderamento e ao
fortalecimento das mulheres - o que ela chama de fenômeno “backlash ou
retaliação”. A antropóloga Analba Brazão vê um movimento antifeminista na
sociedade em prol de um machismo estrutural que relega as mulheres a um papel
secundário.
Ciclo e escalada da violência
A promotora Valéria Scarance,
que também é pesquisadora da temática de gênero, violência contra mulheres e
feminicídio, explica que, no âmbito íntimo, as violências mais severas
acontecem quando há o término da relação ou quando a vítima não atende às
ordens ou desejos do agressor. “Esses homens são ao mesmo tempo
egocêntricos e inseguros porque qualquer conduta da vítima – passar
batom, usar roupas novas, trabalhar, ter amigas, sorrir – pode ser interpretada
por eles como um ato de desrespeito ou traição”, exemplifica. A promotora
contextualiza que, no início, as agressões ocorrem em locais pouco visíveis.
“Mas à medida que a violência evolui, agressores dão socos no rosto, chutes no
corpo, puxam os cabelos, apertam o pescoço das vítimas”.
Um dos dados divulgados
no Anuário Brasileiro de Segurança Pública exemplifica os desafios para
garantir a segurança das mulheres brasileiras: ao menos 121 vítimas foram
mortas em 2023 e 2024 enquanto estavam sob medidas protetivas de urgência
ativa.
“A cada 15 segundos, uma
mulher está sendo espancada no Brasil. E normalmente não há câmeras como o caso
que foi flagrado em Natal. Acontece em áreas isoladas dentro de casa”, diz
Analba Brazão, que defende serem necessárias mais políticas públicas para estimular
novas denúncias. “Muitos casos não são notificados. A gente precisa saber, por
exemplo, quantos órfãos do feminicídio existem”, afirma a pesquisadora, que
atua no Recife (PE). “Nesta semana, aqui em Pernambuco, uma manicure foi
assassinada a facadas, também no rosto e em outras partes do corpo. Ela estava
com medida protetiva de urgência”, lamenta.
Télia Negrão entende que são
necessárias políticas públicas mais profundas que consigam promover uma mudança
cultural. “Nós temos julgamentos que têm elevado as punições devido aos
agravantes. E, no entanto, nós não temos uma redução dos feminicídios ou da
violência. Nós precisamos de mudança cultural”, acredita a pesquisadora que
atua no Rio Grande do Sul.
Denúncias
Pesquisadora em direito penal
e coordenadora da Quilombo, organização do movimento negro no Rio Grande do
Norte, Dalvaci Neves conta que mais de mil mulheres foram vítimas de
feminicídio no Rio Grande do Norte, entre 2013 e 2023 - 80% eram negras. "É
um retrato do nosso quadro social, do racismo e do machismo que nós, mulheres
negras, enfrentamos”. De acordo com ela, no estado, existem apenas 12
delegacias especializadas para atendimento das mulheres em mais de 160
municípios. “Há muitas mulheres no interior e sem acesso para fazerem
denúncia”.
A falta de delegacias
especializadas não é um problema apenas do Rio Grande do Norte. Em todo o
país, segundo levantamento do Ministério da Justiça e da Segurança Pública
divulgado neste ano, há apenas 488 delegacias especializadas, sendo que apenas
204 delas atendem exclusivamente mulheres. Desse total, 46,4% estão no Sudeste.
Ainda no campo das políticas públicas, a pesquisadora defende ser necessário
mais discussão sobre violência de gênero nas escolas. “O Plano
Nacional de Educação vai ser votado agora [no Congresso Nacional]. Precisamos
ter uma educação de combate ao racismo, e que também discuta gênero. Mas nós
temos ainda muitos parlamentares que não querem que esse tema seja incluído”,
aponta.
Dalvaci recomenda que as
mulheres que sejam vítimas prestem queixa, mesmo em casos aparentemente menos
graves como desrespeitos e xingamentos, que configuram violência psicológica.
Ela ressalta ainda a importância de que as pessoas não silenciem quando forem
testemunhas de violência. "Dessa forma, podemos evitar um feminicídio no
futuro”, afirma.
Como denunciar
Se a mulher é vítima da
violência ou se uma testemunha presenciar algum tipo de agressão, pode
denunciar pela Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180, que funciona
24 horas por dia, todos os dias da semana. O serviço gratuito e acessível
em todo o país.
Por esse canal, é possível
receber orientação sobre leis, direitos e serviços da rede de atendimento,
como a Casa da Mulher Brasileira, os centros de referências, as delegacias de
atendimento à mulher (Deam), as defensorias públicas e os núcleos integrados de
atendimento às mulheres.
O Ligue 180 faz o registro e
encaminhamento de denúncias aos órgãos. É possível fazer a ligação de
qualquer lugar do Brasil ou acionar o canal via chat no Whatsapp (61)
9610-0180.
Em casos de emergência, a
orientação é acionar imediatamente a Polícia Militar pelo número 190, em todo o
Brasil.
Outro caminho disponível é via
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos pelo canal do WhatsApp
(61)99656-5008. Funciona 24 horas para denunciar qualquer tipo de violência.
Agência Brasil

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