“Ainda existem incertezas
sobre a autoria, com respostas pendentes de autoridades estrangeiras”, informou
à Agência Brasil a Procuradoria da República no Rio Grande do Norte,
unidade do MPF que conduz a investigação criminal para identificar as causas e
os culpados pelo derramamento de óleo.
As primeiras manchas de óleo
começaram a surgir no litoral da Paraíba no fim de agosto de 2019. Em pouco
tempo, o material poluente atingiu praias, mangues, recifes e
costões dos nove estados do Nordeste: Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba,
Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe; além de trechos do litoral do
Espírito Santo e do Rio de Janeiro.
Segundo o Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), “o mais grave
crime ambiental ocorrido no litoral” afetou 130 cidades ao longo de cerca de
3,6 mil quilômetros de costa.
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A gravidade da situação forçou
a União a acionar, pela primeira vez desde sua criação em 2013, o Plano
Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas sob
Jurisdição Nacional (PNC), mobilizando órgãos públicos federais, estaduais e
municipais, além das Forças Armadas, para monitorar, conter e recolher toneladas de material contaminado.
O plano, contudo, só foi
acionado mais de 40 dias após a constatação das primeiras manchas de óleo
próximas às praias. E foi desmobilizado em 20 de março de 2020, embora
vestígios do poluente continuassem reaparecendo.
Custos
Como, a princípio, a fonte
poluente ou o suposto responsável pelo incidente não foi identificado, o Ibama
pediu que a Petrobras também participasse dos esforços de mitigação e
limpeza. Na época, a petrolífera informou ao Ibama que, para disponibilizar
funcionários e equipamentos, gastaria pouco mais de R$ 43,28 milhões.
A Marinha, por sua vez,
calculou que seus custos ultrapassaram os R$ 128,07 milhões. No total, o Ibama
calcula que a operação consumiu algo em torno de R$ 187,64 milhões.
Todos os valores citados
referem-se à última atualização disponível, de março de 2020, não tendo sido
corrigidos pela inflação do último período. E não incluem os gastos de estados
e municípios.
Há alguns meses, o governo
de Pernambuco informou à Agência Brasil que gastou R$ 9,18 milhões para aliviar
os efeitos do derramamento de óleo em sua costa. Informou ainda que já havia
pedido à União o ressarcimento deste valor, “sem prejuízo de outras medidas que
possam ser adotadas contra os causadores do dano ambiental, se adequadamente
identificados”.
Já o governo do Rio
Grande do Norte gastou R$ 456 mil para recolher mais de 34 toneladas de
resíduos contaminados e minimizar os efeitos do derrame, além de outros R$ 165
mil para que técnicos do Projeto Cetáceos da Costa Branca, da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte, salvassem os animais litorâneos. Nos dois casos,
muitos municípios tiveram que arcar com os processos de limpeza.
Indiciamento
Em dezembro de 2021, a Polícia
Federal (PF) encerrou as investigações apontando que uma quantidade incerta de óleo vazou ou foi lançado ao mar
pela tripulação do navio petroleiro Bouboulina, pertencente à empresa Delta
Tankers, sediada na Grécia.
Com base nas provas e nas
conclusões reunidas durante as investigações realizadas em parceria com vários
órgãos e instituições nacionais e internacionais, a PF indiciou a Delta
Tankers; o comandante do Bouboulina, Konstantinos Panagiotakopoulos, e o chefe
de máquinas do navio, Pavlo Slyvka, pelos crimes de poluição, descumprimento de
obrigação ambiental e dano a unidades de conservação.
O relatório da PF à época
apontou custos de R$ 188 milhões como um “valor inicial e mínimo”, pois o total
do dano ambiental ainda estava sendo apurado.
A partir daí, o fato do
principal inquérito sobre o caso tramitar em segredo de justiça dificultou que
os movimentos sociais, a imprensa e demais interessados se informassem sobre as
providências adotadas para punir os responsáveis e indenizar as comunidades
afetadas.
“A gente tem enfrentado muitas
dificuldades para obter informações. Temos oficiado o MPF constantemente, e nem
sempre recebemos respostas”, garantiu Andrea Rocha do Espírito Santo, uma das
coordenadoras da campanha Mar de Luta, que reúne organizações de pescadores
artesanais e entidades de defesa e promoção dos direitos humanos e
socioambientais, além de pesquisadores e ativistas.
Consultado pela Agência
Brasil, o MPF também se limitou a responder que, por se tratar de
investigação sigilosa, não pode fornecer detalhes sobre as dúvidas que acredita
ainda não terem sido esclarecidas acerca da autoria do derrame de óleo ou
de quais “autoridades estrangeiras” espera receber informações que ajudem a
elucidar o caso.
A Advocacia-Geral da União
(AGU), órgão competente para representar a União judicialmente, só revelou que,
até o momento, não integra nenhum processo envolvendo a Delta Tankers ou os
esforços para reaver parte dos gastos que o Poder Público foi obrigado a
assumir.
Já o Ibama informou que, mesmo
a PF tendo apontado o navio grego e seus responsáveis como fonte da poluição,
não aplicou nenhuma sanção administrativa ambiental ou multa.
“O indiciamento é um ato
técnico da polícia e que ocorre durante uma investigação, no qual há indícios
de que a pessoa possa ter cometido um crime. Porém, o indiciamento não é
suficiente para lavratura de auto de infração pelo Ibama”, explicou o órgão.
De acordo com o Instituto,
legalmente o caso pode resultar em sanções de até R$ 100 milhões. Se
arrecadado, esse valor será destinado ao Fundo Nacional de Meio Ambiente –
fonte de financiamento público para projetos socioambientais e iniciativas de
conservação e de uso sustentável dos recursos naturais – e para o Tesouro
Nacional.
Mesmo não tendo aplicado
nenhuma multa, o Ibama já ressarciu ao menos a Petrobras pelos gastos – o
equivalente a R$ 39 milhões (valor de 2020) e não os R$ 43,28 milhões
inicialmente estimados.
Sigilo
A presidenta da seccional da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Pernambuco, Ingrid Zanella, comentou o
fato de o inquérito transcorrer em segredo de justiça.
Especialista em direito
marítimo e ambiental, a advogada afirma que, em alguns casos o sigilo é
razoável, embora impeça a sociedade de acompanhar a evolução da apuração.
“O segredo de justiça é
justificável quando a publicidade, o compartilhamento de dados sensíveis, pode
atrapalhar a investigação, mas deve ser sempre justificado, pois é uma
exceção. Neste caso específico, a sociedade não está acompanhando os
caminhos que a investigação está percorrendo. Não conhecemos detalhes
como, por exemplo, para quais autoridades internacionais o MPF está pedindo
informações; quem já foi ouvido; quais evidências os procuradores estão
procurando obter para identificar se a empresa indiciada pela PF foi ou não a
responsável”, disse Ingrid antes de comentar a resposta da AGU.
“A AGU não deve ser parte em
nenhum processo simplesmente porque não há, atualmente, no Brasil, um processo
indenizatório pelos danos decorrentes deste, que foi um dos maiores desastres
ambientais que já acometeu nosso Brasil”, acrescentou a advogada.
Segundo ela, uma eventual ação
de responsabilização civil que cobre reparação pelos danos ao meio ambiente e
pelos prejuízos às comunidades atingidas só deve ser ajuizada quando não
restarem dúvidas sobre os culpados.
“Se o MPF julgar que as
investigações não são contundentes, só será possível responsabilizar atores por
omissão no dever de cuidado”, afirmou a advogada, alegando que a punição
criminal e civil aos responsáveis contribuiria para dar mais segurança à navegação
e ao transporte aquaviário no país.
“Se um fato como este, de
repercussão internacional, fica impune, uma das consequências é a fragilização
da proteção ambiental no país.”
Dúvidas
Para Andrea Rocha, que além de
integrar a campanha Mar de Luta é agente do Conselho Pastoral dos Pescadores e
Pescadoras (CPP), da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o imbróglio
jurídico revela a dificuldade de punir quem comete um crime ambiental
transnacional, especialmente quando isso depende da cooperação internacional.
“Desde que a PF divulgou suas
conclusões, os pescadores e pescadoras vêm manifestando dúvidas e preocupações.
Entre outras coisas porque temos poucas informações [oficiais]. Soubemos, por
exemplo, que pode haver indícios de que o navio [Bouboulina] chegou ao seu
destino carregando o mesmo volume de carga embarcada, mas nenhum órgão nunca
nos confirmou se isso ocorreu, nem tivemos acesso ao inquérito”, comentou
Andrea, destacando que a incerteza que o MPF manifestou a Agência Brasil pode
ser de outra natureza.
“Esta é a primeira vez que
vejo o MPF revelar que tem dúvidas. Apesar de que algumas ações civis que
buscam reparações pelos danos ambientais e riscos à saúde das pessoas foram
arquivadas em diferentes estados, como em Pernambuco, por falta de comprovação.
Ou seja, de certa forma, parece-nos que o MPF considera que as informações
sobre este crime são insuficientes”, avaliou.
“Consideramos um absurdo a
forma como este crime vem sendo tratado. A resolução deste caso, com a punição
dos responsáveis e uma reparação integral às vítimas, deveria ser prioridade
máxima para o Estado. Inclusive porque a demora e impunidade potencializam todo
tipo de ameaça que as comunidades recebem.”
“A gente não consegue sequer
calcular o número de pessoas afetadas em mais de mil localidades atingidas pelo
óleo. Nem a real dimensão do impacto, pois, até hoje, há comunidades relatando
dificuldades. Enquanto o Estado brasileiro parece tratar este caso como um
crime simples”, concluiu Andrea.
Andrea também listou as
expectativas dos membros da campanha Mar de Luta.
“Queremos o reconhecimento da
dimensão desse crime; total recuperação ambiental; reparação socioeconômica às
vítimas; proteção aos territórios tradicionais pesqueiros, com o fortalecimento
da legislação, para que isso nunca mais ocorra, e as devidas punições aos
responsáveis – inclusive aos gestores públicos [federais] que, à época,
demoraram a tomar as providências necessárias para evitar que essa tragédia
chegasse à dimensão que chegou.”
Comissões
A contaminação de parte do
litoral brasileiro pelo óleo foi objeto de ao menos três comissões
parlamentares – incluindo a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da
Câmara dos Deputados, que encerrou seus trabalhos em abril de 2021, sem
que seus membros aprovassem um relatório final no qual apontassem
responsabilidades e omissões.
Quando a CPI da Câmara foi
instalada, em novembro de 2019, a Casa já tinha criado uma comissão
externa encabeçada por parlamentares de oposição ao governo do então presidente
da República Jair Messias Bolsonaro.
Em um relatório parcial
divulgado com apenas um mês de funcionamento, o grupo apontou que, à época, os
órgãos federais foram omissos e que o atraso na tomada de decisões reduziu as
possibilidades de minimizar os impactos ecológicos e socioeconômicos, entre
outras críticas.
O Senado também formou uma
Comissão Temporária Externa para acompanhar as ações de enfrentamento à
propagação do óleo pelo litoral brasileiro.
O relatório aprovado em
novembro de 2022 destacou que o caso se deu em um contexto de “sistemático
desmantelamento da estrutura de governança ambiental” do governo federal, o
que, segundo os senadores, teria agravado os efeitos do desastre.
Agência Brasil

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