(Esta reportagem faz parte de
uma série especial do g1 para o Dia das Mulheres, celebrado
nesta terça-feira, 8 de março, sobre Mulheres Pioneiras. Veja a série
completa aqui)
De seus quase 77 anos de
idade, 27 são dedicados ao comando e à orientação da tribo Jenipapo-Kanindé,
em Aquiraz,
na Região Metropolitana de Fortaleza.
Não há registros oficiais, e a
Fundação Nacional do Índio (Funai), procurada pela reportagem, não se
manifestou, mas Pequena é tida pela tradição como a pioneira entre as
caciques mulheres do país desde a sua atuação na luta pela causa indígena
nos anos 1990.
Uma de suas principais
conquistas foi a demarcação da terra indígena do seu povo. O processo
teve início há mais de 25 anos e está longe do fim - faltam ainda alguns
procedimentos, como a desintrusão (retirada de ocupantes ilegais), até a aldeia
receber a homologação definitiva, mas representa um grande feito.
"O máximo que eu desejava
antes de eu ir embora, antes de o pai Tupã me levar, é ter a graça de ver o
território do povo Jenipapo-Kanindé desintrusado, registrado, tudo preparado
pros índios que ficarem, e eu ir feliz. É isso que eu desejo muito. Toda noite,
eu peço a Deus", conta.
Para Rute Souza, da etnia
Anacé e doutoranda em Ciências Sociais na Universidade de Salamanca, na
Espanha, ter mulheres caciques é "uma representatividade muito forte no
Brasil", uma vez que esse espaço era naturalmente ocupado por homens,
reflexo da instituição do patriarcado no país.
"Só homem poderia ocupar
esses espaços e, há um tempo atrás, com a cacique Pequena assumindo esse
espaço, foi muito importante para nós mulheres mostrarmos que podemos estar
onde quisermos. É algo muito simbólico ter a cacique Pequena nesse espaço, que
vem contribuindo para outras mulheres ganharem voz", avalia a
pesquisadora.
Segundo Braulina Baniwa, da
Articulação Nacional das Mulheres Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), o
movimento feminino dentro das etnias tem crescido bastante nos últimos dez anos
e em espaços diferentes.
"Hoje, temos mais
mulheres caciques coordenando territórios, várias coordenadoras em nível
nacional que assumem papel muito importante na discussão do nosso povo. Temos
mulheres universitárias, deputadas e temos anciãs que, dentro do território,
trabalham nesse acolhimento, servindo como referência para essa nova geração de
liderança", afirma.
O IBGE estimou, em 2020, que a
população indígena no país era de 1.108.970 pessoas. Não há levantamento
de quantas lideranças nas aldeias são mulheres. O censo demográfico de
2010 indicou que havia 422.068 (51,6%) homens indígenas e 395.895 mulheres
indígenas.
O início
Em um lugar tradicionalmente
ocupado por homens, Pequena foi escolhida para guiar os caminhos do seu grupo,
hoje com cerca de 400 indígenas, em 1995, três anos após a morte do cacique
anterior.
"O pessoal me elegeu como
um vereador, um prefeito ou um deputado, como um ministro ou senador ou
presidente. Tudo isso passa porque é só por quatro anos, e eu sou [cacique] pra
sempre. Quer dizer que sou a rainha. E, até na minha morte, na minha partida, o
povo ainda vai ficar lembrando", diz a indígena.
Pequena aprendeu a ser cacique
no dia a dia, pois seu antecessor não conseguiu repassar a tempo os
ensinamentos. Quem a preparou, conta ela, foram três entidades: Deus, os
encantados e a natureza. Com esse tripé, a mulher estava firme para lutar
pelo território da sua gente e garantir estrutura para a aldeia.
A luta pelo território
Em 1995, a cacique cearense
pegou um ônibus em direção a Brasília para conversar com o presidente da Funai
em uma marcha a favor da atualização do Estatuto do Índio, publicado
em 1973, durante a ditadura militar. Ela conta ter mirado nos olhos dele e
dito:
"Senhor presidente, eu
não vim visitar Brasília a turismo, eu vim a negócio. O senhor 'tá olhando no
olho de uma mulher cacique, que o meu povo botou e, hoje, sou a pessoa à frente
deste povo. Eu quero que o senhor mande seu povo, por favor, lá na aldeia,
fazer estudo dos índios e da mãe terra pra nós sabermos mesmo de verdade o
nosso território".
Dois anos se passaram desde a
conversa até que funcionários da Funai foram à aldeia Jenipapo-Kanindé e começaram os estudos para realizar a demarcação da terra
indígena. Em 1999, o território foi
delimitado: a área da comunidade era de 1.734 hectares oficialmente. Em 2011, ela foi demarcada. No entanto, ainda
faltam os procedimentos de desintrusão, registro e homologação.
Trabalho que gerou frutos
Durante sua luta, Pequena
costumava dizer que queria terra, saúde e educação para o seu povo. Entre idas
e vindas com autoridades públicas, a aldeia conseguiu algumas realizações.
Em 1999, além da delimitação,
o povo Jenipapo-Kanindé recebeu uma casa de farinha. Dois anos depois, chegou
energia elétrica. Em 2005, o posto de saúde; e em 2007, um galpão foi
construído, o qual é utilizado para a venda de artesanatos indígenas. Mas
a escola indígena foi, talvez, uma das que mais deram trabalho à
Pequena.
"Quase toda semana eu
estava lá na Secretaria da Educação [Seduc]. Eu dizia que queria a escola dos
índios. Se os outros índios ganham, por que a gente não ganha? Acho que eles se
aborreceram tanto de eu estar lá na Seduc, que um dia disseram que iam fazer a
escola", relembra.
Hoje, a escola atende as 130
famílias que moram na aldeia em Aquiraz. No total, são
quase 400 indígenas que vivem no local.
Passagem do cacicado
Pequena tem 16 filhos, 38
netos e 54 bisnetos. Mesmo com a família grande desse jeito, ela fez questão de
passar o cacicado para duas de suas filhas mulheres.
Jurema e Juliana agora também
respondem pela comunidade ao lado da mãe, que continua cacique para consulta e
direcionamento. Quando uma das filhas está na aldeia, a outra tenta se
movimentar para além dela politicamente lutando para adquirir mais benefícios
para o seu povo. A mãe garante que está se sentindo muito bem representada
pelas filhas.
"Repassei o meu poder pra
elas duas, que, daquele dia pra frente, elas iam se dispor a trabalhar em
defesa do povo Jenipapo-Kanindé. Só pedi que elas fizessem igual a mim ou
melhor na luta que eu vivi", relembra.
Discriminação de gênero
Alcançar o espaço em que
chegou não foi fácil. A discriminação de gênero, conforme conta a cacique,
também está imersa na população indígena: "Fui bastante discriminada pelos
próprios índios. Não foi por ninguém branco, não. Eles diziam na minha cara que
mulher só servia pra cama e pé de fogão".
"Mulher não pode ser só
isso", discorda. "Mulher vai muito além, ela pode chegar à altura do
homem, não trespassar do homem, mas chegar no ombro do homem e se igualar a
ele".
A trajetória de Pequena
conseguiu romper barreiras e trazer representatividade para as mulheres indígenas.
"Eu fiz o caminho
para as mulheres do Brasil porque, se elas tinham coragem, parecia que não
tinham. Elas não enfrentaram o homem que nem eu enfrentei. Não foi fácil eu,
sozinha, enfrentando mais de mil homens e dizer: 'Eu sou essa pessoa e estou
aqui trabalhando pelo meu povo'. Eles não queriam aceitar, mas tiveram que
abaixar a crista".
O antes e o agora
Se o cacicado feminino é
relativamente recente, a organização feminina nas
aldeias começou ainda no século 19 - mais precisamente em 1884, com a
criação da Associação de Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro, no Amazonas.
Ao longo dos anos, as mulheres
indígenas, através de muita luta, têm conseguido se inserir cada vez em mais
espaços. Quitéria Binga Pankararu, de Pernambuco, por exemplo, foi ativa no
processo da Assembleia Constituinte brasileira. Ela foi uma das lideranças
indígenas que furaram o bloqueio de seguranças no Congresso Nacional, em 1988,
para defender os artigos que garantiam os territórios dos povos originários.
Atualmente, diversas
representações femininas formam a Anmiga, que reúne os indígenas de todos os
biomas do Brasil.
Para Braulina Baniwa,
co-fundadora da Anmiga, as mulheres sempre estiveram na linha de frente pelo
direito do povo indígena.
"Tanto a cacique Pequena,
como essas outras mulheres começaram a fazer esse movimento. Elas são parte
importante de todos os processos políticos da comunidade, são pilares na construção de
participação de vozes das mulheres", afirma.
Protagonismo feminino
A antropóloga Rute Souza
entende que o pioneirismo de Pequena contribui para "dar voz" às
mulheres. "Só homem poderia ocupar esses espaços e, há um tempo atrás, com
a cacique Pequena assumindo esse espaço, foi muito importante para nós mulheres
mostrarmos que podemos estar onde quisermos. É algo muito simbólico ter a
cacique Pequena nesse espaço, que vem contribuindo para outras mulheres
ganharem voz", avalia a pesquisadora.
A antropóloga destaca que as
mulheres indígenas não só já ocupam vários desses pontos de poder, mas também
vêm ganhando espaços nas universidades e nos parlamentos. Um exemplo é a atual
deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR), primeira mulher indígena a ser
eleita para a Câmara.
"As mulheres terem
ganhado espaço nesse âmbito social ao qual nos é estruturado a não se inserir é
fruto de muita luta das mulheres das comunidades e das aldeias que, por muito
tempo, ficaram só no apoio, sem poder ir à luta. É um processo de vitória",
afirma.
Nenhum comentário:
Postar um comentário